É o que defende Caitlin Vogus, vice-diretora no Centro por Democracia e Tecnologia dos EUA, entidade que atuou como amicus curiae a favor do Google no processo que tramita na Suprema Corte dos EUA que discute se plataformas e redes sociais devem ser responsabilizadas por conteúdos publicados por usuários.
Para Vogus, uma mudança na proteção legal das empresas americanas pode causar impacto global e provocar uma remoção de conteúdo em massa, inclusive de reportagens ou material protegido pela Constituição.
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Folha - Qual sua posição sobre os casos na Suprema Corte?
Caitlin Vogus - No caso do Google, a Suprema Corte está analisando a Seção 230, que é uma lei federal nos Estados Unidos que, em geral, isenta de responsabilidade plataformas sobre publicações de outras pessoas. A questão é se as plataformas também estão protegidas quando recomendam conteúdo de outros usuários. Nossa posição é que isso se aplica a recomendações de conteúdo, porque isso é necessário para proteger a liberdade de expressão online.
Folha - E no caso do Twitter?
Caitlin Vogus - O tribunal está interpretando uma lei diferente, a Lei Antiterrorismo. A questão é se um serviço que remove algum conteúdo terrorista, mas não todo, se isso deve ser considerado como ajuda e instigação ao terrorismo. Nossa posição nesse caso é que, a menos que o serviço tenha conhecimento real de que está ajudando especificamente um ato terrorista, ele não deve ser responsabilizado. Mais uma vez o motivo vem da nossa preocupação com a liberdade de expressão do usuário. É necessário garantir que os serviços não tenham incentivos para remover coisas como reportagens ou materiais antirradicalização por medo de serem responsabilizados.
Folha - O argumento é que isso vai incentivar a remoção de conteúdo em massa?
Caitlin Vogus - A lei diz que um provedor de serviços não é responsável pelo que seus usuários dizem na maioria dos casos, então isso torna as plataformas muito mais dispostas a permitir que as pessoas falem de maneira livre online. Se isso mudar, achamos que os provedores terão medo da responsabilidade e sua reação seria remover excessivamente publicações, adotando uma abordagem muito avessa ao risco. Removerão muitos conteúdos, mesmo que não sejam prejudiciais, que estejam protegidos pela Constituição ou que sejam até benéficos. As plataformas podem não ser capazes de distinguir o conteúdo que poderia causar problemas legais e retirariam muitas publicações.
Folha - Mas como conciliar a necessidade de combater ameaças terroristas com a liberdade de expressão?
Caitlin Vogus - A lei não imuniza as plataformas de crimes federais ou estaduais. No caso do Twitter, é uma ação civil de recuperação de danos. As redes também têm um forte incentivo de usuários e anunciantes para retirar todo tipo de conteúdo prejudicial, incluindo conteúdo terrorista. Mas o problema é que a tecnologia não é suficiente para permitir que eles o façam perfeitamente. Sempre haverá erros.
A questão é: queremos incentivar um regime em que as redes tenham que realmente retirar tanto conteúdo a ponto de começar a impactar coisas como o compartilhamento de reportagens, porque querem coibir todo e qualquer conteúdo terrorista possível?
Folha - Mas a internet mudou muito desde os anos 1990, quando a Seção 230 surgiu, com os algoritmos de recomendação. Não é hora de atualizar a legislação?
Caitlin Vogus - Acredito que o Congresso estava pensando a frente, talvez surpreendentemente, e tentou escrever a lei talvez da maneira mais agnóstica tecnologicamente falando. Sabiam que a internet era uma tecnologia emergente na época, prestes a mudar muitas coisas na sociedade, que ainda não tinha surgido com o poder que tem hoje, e foram capazes de olhar para o futuro e se perguntar: o que queremos que o sistema seja para continuar a promover a livre expressão online? Foram capazes de configurar um sistema que foi em grande parte bem-sucedido em permitir que a liberdade de expressão online florescesse.
Folha - Quais são os efeitos globais de uma mudança no entendimento da Suprema Corte?
Caitlin Vogus - Muitas empresas de tecnologia estão baseadas nos EUA e portanto sujeitas ao regime de responsabilidade legal daqui. Uma mudança poderia afetar como elas operam em todo o mundo. Ao mesmo tempo, estamos vendo muitos países que estão começando a impor seus próprios regulamentos a essas empresas de tecnologia. Por exemplo, na União Europeia, a introdução dos serviços digitais trouxe um novo regime jurídico. Há novas leis na América do Sul, Índia e outros lugares ao redor do mundo. E assim, mais e mais países estão tentando deixar sua marca na regulamentação da internet.
Folha - O debate é muito similar no Brasil, assim como em outros países, com o avanço do extremismo político. Mesmo que não haja mudança nos EUA, como fica a pressão sobre as plataformas com essas regulações em outros países?
Caitlin Vogus - A pressão aumentará e já aumentou sobre as redes sociais para tomarem mais medidas contra conteúdos indesejáveis em seus serviços, e o CDT insta as empresas a pensar nos padrões internacionais de direitos humanos ao tomar decisões sobre suas políticas de moderação de conteúdo. Queremos que as empresas garantam que estejam constantemente atualizando suas políticas para responder a novas ameaças em todo o mundo. Também que sejam transparentes sobre a moderação de conteúdo e remoção de publicações. Assim, o público sabe se estão tomando medidas e pode julgar se é suficiente.
Mas acho que onde nossa preocupação maior é quando se trata de regulamentação governamental contra conteúdo considerado ruim ou indesejável. Nos preocupamos com coisas como dar aos funcionários públicos o poder de silenciar seus críticos. Acho que a pressão da sociedade civil, público, acadêmicos e outros grupos é totalmente apropriada, e as empresas precisam ouvir uma ampla gama de vozes das pessoas afetadas pelo conteúdo online. Só fico preocupada em dar ao governo muito poder em qualquer país quando se trata de regular o discurso online.Raio-X | Caitlin Vogus
Vice-diretora do Projeto de Liberdade de Expressão do CDT (Centro para Democracia e Tecnologia), que tem sedes em Washington (EUA) e Bruxelas (Bélgica). A entidade é amicus curiae a favor do Google no processo na Suprema Corte. Advogada por Harvard, Vogus fez carreira em instituições em defesa da liberdade de expressão e imprensa.