O gigante asiático, que já há algum tempo é o maior parceiro comercial brasileiro, corteja o Brasil, maior país da América Latina, para ser seu aliado estratégico também no que chama de redefinição do panorama geopolítico global – uma forma razoavelmente sutil de tratar sua ousada ofensiva para rivalizar com os Estados Unidos pelo posto de maior potência política e militar do planeta no século 21.
Depois de três anos de recolhimento na pandemia, a China tem investido pesado no plano, tanto do ponto de vista financeiro, com ampliação considerável dos gastos com ações no campo diplomático, quanto do ponto de vista retórico e prático.
De uns tempos para cá, o presidente Xi Jinping, que acaba de ser reconduzido para um terceiro mandato de cinco anos e é aclamado como a mais poderosa liderança chinesa da história recente, subiu o tom de seu discurso tradicionalmente cuidadoso e comedido e se queixou das ações Washington para tentar conter as ambições da China. Ao mesmo tempo, passou a pregar com maior ênfase a necessidade de definição de uma “nova ordem” mundial.
Referindo-se claramente ao que considera ser um movimento de declínio do poderio americano na cena global, inclusive do ponto de vista econômico, Xi Jinping tem dito que o mundo passa por mudanças radicais nunca vistas antes e que é preciso refundar as relações entre os diferentes países a partir de uma lógica diferente, espalhando o desenvolvimento e a cultura da paz pelo mundo – uma opção de discurso que, por si, já dá bem o tom da campanha chinesa para ganhar corações e mentes fora de seus domínios.
Recém-nomeado por Xi Jinping para o posto de ministro das Relações Exteriores, Qin Gang, ex-embaixador chinês nos Estados Unidos, declarou que a China resolveu pisar no acelerador em sua política externa e, seguindo a linha do chefe, mas com menos contenção ainda nas palavras, foi incisivo ao dizer que a disputa com os americanos “é um jogo de vida ou morte de soma zero” no qual ninguém tem a ganhar.
Essa disputa entre americanos e chineses se dá em pelo menos duas frentes relevantes. Numa delas, de ordem econômica e tecnológica, as duas potências se digladiam pela dianteira nas relações comerciais com os demais países (nessa, a China tem conseguido superar os Estados Unidos com folga, vendendo ao mundo quase o dobro do que vendem os americanos) e pelo domínio das ferramentas tecnológicas que ambas oferecem (a batalha pelo 5G, em que os americanos jogam pesado contra a chinesa Huawei, é só uma das faces dessa guerra).
A outra frente, mais dramática e arriscada, envolve o protagonismo militar das duas potências nucleares. Na guerra da Ucrânia, os Estados Unidos acusam a China de armar a Rússia de Vladimir Putin, aliada notória de Pequim. A China nega e, repetidamente, espicaça os americanos por jogarem mais combustível na fogueira do conflito ao abastecer as tropas de Vladimir Zelensky, o presidente ucraniano.
Agora mesmo, Estados Unidos e China estão no centro de mais um foco de alta tensão em torno de Taiwan, que a China reivindica como parte de seu território – o que, claro, adiciona mais um elemento importante ao teste diplomático que Lula terá nesta viagem. Os Estados Unidos apoiam o governo taiwanês e se colocam como uma espécie de escudo contra uma eventual tentativa de Pequim de invadir e anexar a ilha. Os chineses veem na aliança um risco porque, na prática, Taiwan acaba por se transformar em uma base avançada para as tropas americanas bem nas suas barbas – a ilha está a apenas 150 quilômetros da costa da China.
Na semana passada, em resposta a uma rápida visita da presidente de Taiwan aos Estados Unidos, o que enxergou como provocação, o governo chinês iniciou exercícios militares e promoveu um cerco à ilha. Washington, que já vinha fazendo incursões com aviões de sua Força Aérea no entorno da ilha, enviou um navio de guerra para a região.
A questão é sensível porque um passo em falso pode resultar num perigoso confronto entre China e Estados Unidos, que teoricamente ajudariam Taiwan a se defender de uma eventual invasão. Seja por essa, seja pelas outras questões envolvendo as duas potências, especialistas veem riscos reais de, no futuro, e a depender da condução, a escalada da tensão entre Estados Unidos e China degringolar para uma guerra – seria, enfim, um derradeiro e indesejado passo da disputa pela hegemonia no planeta.
É nesse delicado contexto que entra a ofensiva diplomática chinesa. Para além de tentar atrair o Brasil para sua empreitada, Pequim vem se movimentando para se aproximar de governos de outros países tradicionalmente aliados dos Estados Unidos. Na semana passada, Xi Jinping recebeu em Pequim o presidente francês Emmanuel Macron. Depois de ser afagado pelo líder chinês, Macron saiu dizendo que a Europa precisa reduzir sua dependência dos Estados Unidos, que não pode se limitar a simplesmente seguir o que querem os americanos e que deve evitar “ser apanhada” em crises que não são suas. Ponto para Xi.
Por seu gigantismo e sua importância entre os países emergentes, o Brasil é uma fronteira primordial para os ambiciosos planos chineses, o que na prática se torna um desafio complicado para Brasília pela necessidade de se equilibrar entre os interesses de Pequim e a tarefa de não desagradar aos Estados Unidos, tradicionais aliados e também importantes parceiros comerciais do país há décadas.
Nesta que será sua terceira visita à China desde que assumiu o Planalto pela primeira vez, em 2003, Lula deve assinar mais de duas dezenas de acordos comerciais e de cooperação como parte do que Brasília e Pequim têm classificado como “reaproximação estratégica”, após um período de distanciamento entre os dois países durante o governo de Jair Bolsonaro – o ex-presidente, por mais de uma vez, lançou provocações contra os chineses, o que esfriou a relação consideravelmente.
Os acordos envolvem diversas áreas – comércio, investimentos, energia e clima, por exemplo. No front comercial, o Brasil deve fechar a venda de aviões pela Embraer para os chineses.
Há grande expectativa de que, como resultado da reaproximação, a China amplie sua carga de investimentos no país e ajude, assim, a destravar a economia. Dias atrás, Lula declarou que não deseja que os chineses comprem empresas brasileiras, mas invistam em projetos que sejam importantes para o Brasil.
A China pressiona pela adesão brasileira à chamada “Nova Rota da Seda”, ou “Cinturão e Rota”, um megaprojeto que Pequim pôs em marcha há dez anos e que está na raiz de sua busca por protagonismo no mundo.
Por meio do projeto, que conta com a franca oposição dos Estados Unidos, governo e companhias chinesas despejam investimentos, especialmente na área de infraestrutura, em países de todos os continentes. Até recentemente, especialmente em razão dos reflexos que teria na relação com os americanos, o Brasil vinha resistindo a participar, mas o assunto voltou à pauta e pontos de um eventual acordo de adesão chegaram a debatidos entre os dois governos na preparação da visita de Lula à China. O tema é tratado sob reserva entre o Palácio do Planalto e a cúpula do Itamaraty. Há, dentro do próprio governo, quem aposte que o anúncio da adesão, ou ao menos da intenção do Brasil de aderir, pode ser uma das surpresas da viagem.
Algumas outras demandas dos chineses já estão negociadas e serão incluídas entre os anúncios a serem feitos durante a visita. É o caso de um acordo que permitirá transações comerciais entre os dois países diretamente em real e yuan, sem passar pelo dólar. Trata-se de mais uma questão cara à China, que dentro de seu plano de se tornar uma potência hegemônica trabalha pela “desdolarização” do planeta – e, claro, para que sua moeda vire uma competidora natural da moeda americana.
Depois de uma longa viagem com escalas em Lisboa e Abu Dhabi, Lula chega a Xangai na noite desta quarta-feira, manhã no Brasil. Na maior cidade da China, ele participará da posse de Dilma Rousseff como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, também chamado de “Banco dos Brics”, o bloco de países emergentes do qual o Brasil faz parte junto com Rússia, Índia, China e África do Sul. O banco tem sede em Xangai.
Indicada pelo governo brasileira, Dilma já assumiu o posto na prática, mas quis esperar a visita de Lula à China, adiada no fim do mês passado após ser diagnosticado com pneumonia, para fazer a posse solene. Nesta quinta, o presidente deverá discursar sobre a importância de o banco, sob a liderança brasileira, investir em projetos que mudem a vida das populações dos países emergentes.
Ainda em Xangai, ele deverá se reunir com executivos de grandes companhias chineses. Nesta terça, assessores diziam haver ainda a possibilidade de uma visita a uma base da Huawei, a gigante de tecnologia chinesa que os Estados Unidos abominam e dizem ser instrumento de desenvolvimento de artifícios de espionagem a serviço de Pequim. Também estava dependendo de confirmação um jantar com dirigentes do Partido Comunista Chinês.
No dia seguinte, já em Pequim, Lula será recebido por Xi Jinping no Grande Salão do Povo. Também terá encontros com o primeiro-ministro do país, Li Qiang, e com o presidente da Assembleia Popular Nacional, o congresso chinês, Zhao Leji. O governo chinês exigiu que, 24 horas antes do encontro, todos os participantes da comitiva brasileira façam testes de Covid-19 – um cuidado especial para evitar riscos para Xi Jinping e outros integrantes de seu gabinete.
Um dos temas da pauta do encontro com o presidente chinês será a guerra na Ucrânia. Lula tem falado sobre a intenção de criar uma espécie de “grupo da paz” para tentar convencer ucranianos e russos a interromper o conflito, iniciado há mais de um ano. O presidente brasileiro já disse que qualquer iniciativa nesse sentido precisa contar, necessariamente, com a participação da Rússia – talvez o único país no mundo capaz de demover Vladimir Putin. Na semana passada, o presidente brasileiro tropeçou ao falar do assunto, especificamente ao sublimar a gravidade da anexação da Crimeia pela Rússia, e foi alvo de pesadas críticas – e não apenas dos ucranianos.
Lula segue uma fila de visitas de estado tidas como essenciais para o novo momento da diplomacia chinesa. Desde que foi reconduzido para o terceiro mandato, Xi Jinping já recebeu o premiê alemão, Olaf Scholz, o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez, e, dias atrás, Macron e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
Em fevereiro, Lula foi a Washington para uma reunião com Joe Biden. O encontro, quase protocolar, foi classificado por analistas como frio e com poucos resultados práticos. No atual cenário de rivalidades mais do que afloradas entre Estados Unidos e China, a ver se a reunião com Xi Jinping ultrapassará a linha das afinidades ideológicas e se converterá em resultados práticos que sejam capazes, de fato, de ajudar a destravar a economia brasileira e posicionar o país em uma posição de maior relevância na cena mundial.
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