Trinta anos depois, mais de 20 adolescentes do grupo de percussão Casa do Menor São Miguel Arcanjo, de Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio, tocavam os instrumentos em alto e bom som para deixar claro que a memória desses mortos não está silenciada. A professora do grupo, Grayce Andley, explicou que eles fazem esse ato após 30 anos, para mostrar que parentes dos mortos não estão sozinhos.
O dia de homenagens foi organizado pelo Movimento Candelária Nunca. Fátima Silva, uma das fundadoras da organização não governamental, explicou à Agência Brasil que o movimento vai além de pedir justiça pelos oito assassinados. "A gente tem hoje crianças morrendo antes de criar seus sonhos, crianças que nem chegam a dez anos de idade. A gente quer avanço nas políticas públicas, protagonismo, que as crianças e adolescentes possam viver em paz nas suas comunidades", disse a ativista que trabalhava com menores em situação de vulnerabilidade na época da chacina.
Dois policiais militares e um ex-policial foram condenados pelo massacre, os três com penas que superam os 200 anos de prisão. Wagner dos Santos, que foi alvo de quatro disparos, conseguiu sobreviver à chacina e acabou se tornando testemunha para a elucidação do caso. Por questão de segurança, ele passou a viver fora do Brasil. Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, o PM Nelson Oliveira dos Santos cumpriu pena até sua extinção, em 2008. Já o PM Marco Aurélio Dias de Alcântara e o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel Borges cumpriram suas penas até receberem indultos, em 2011 e 2012, respectivamente.
Irmã de Wagner, Patrícia Oliveira enxerga o ativismo dela e do irmão como uma forma de combate à impunidade. "A gente luta para que outras pessoas não passem pelo que ele passou, que vários outros familiares passam. Porque não é só a Chacina da Candelária, mas também a de Vigário (1993), Acari (1990), entre outras que acontecem no Rio de Janeiro todos os dias. A [Chacina da] Candelária continua, ela não acabou", disse à Agência Brasil.
Dentro da igreja, assentos lotados para uma missa e um ato interreligioso. Além do sentimento de dor pelo passado, uma preocupação com o presente e o futuro. Dados mostram que essa preocupação tem motivo para existir.
Um estudo do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), mostrou que, de 2007 a 2022, foram registradas 27 "megachacinas" policiais no estado (segundo a metodologia da pesquisa, quando resultaram em oito mortes ou mais, como na Candelária). Esses crimes representaram a morte de 300 pessoas.
A advogada Marinete da Silva, mãe da vereadora carioca Marielle Franco - assassinada a tiros em março de 2018 - esteve presente na missa e lembrou que a filha participou, por vários anos, do Movimento Candelária Nunca Mais. Marinete mostrou solidariedade a todas as vítimas de chacinas. "A dor [que sinto] é a mesma, e foi a mesma maneira também, com tiro, uma violência imensa. A gente tem que estar aqui para ajudar e continuar essa luta com essas mães que passam pelo mesmo problema que eu", falou.
Fátima Silva, do Candelária Nunca Mais, explicou que o dia de manifestação é também um pedido de reparação para famílias de vítimas da violência cometida pelo Estado.
"Você não tem reparação. Você vê hoje mães que perderam seus filhos e que não são acolhidas pelo Estado. Tem mães que ficam com a saúde mental adoecida e morrem sem ver o retorno da justiça. As balas que matam os meninos são pagas por nós, contribuintes. Então, desse mesmo dinheiro que a gente paga, a gente quer reparação", pede Fátima Silva.
Depois das cerimônias dentro da igreja, centenas de pessoas – grande parte crianças e adolescentes – seguiram em caminhada pelo centro da cidade. Eles levavam faixas e cartazes com pedidos de justiça e políticas públicas. Numa das faixas se liam as campanhas virtuais #vidasnegrasimportam e #dordemãenãotemfronteira.
Em nota, a PM do Rio de Janeiro afirma que suas ações têm "como preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor". Ainda segundo a PM, o índice de mortes por intervenção de agentes do Estado caiu mais de 15% de janeiro a maio deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022.
A Secretaria de Assistência Social da prefeitura do Rio, também por meio de nota, informa que existe um serviço de acolhimento institucional temporário para garantir direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. De acordo com a secretaria, de janeiro a junho do ano de 2023 foram realizados 2.907 acolhimentos. Atualmente, encontram-se acolhidos 173 crianças e adolescentes.
A Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do estado do Rio informou que desenvolve programas voltados para a proteção social de crianças e adolescentes que têm direitos violados ou ameaçados, como os programas de Trabalho Protegido na Adolescência e de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Risco.
A Agência Brasil entrou em contato com a Polícia Civil, mas, até a publicação desta reportagem, não teve resposta.