Cansados de serem invisíveis para a mídia tradicional, Raimundo e o primo William Cardoso decidiram criar um sistema de comunicação local. Havia muitas histórias para contar. Desde as ancestrais, que remetem ao início do século 19, quando os quilombos eram centros de resistências de escravizados fugitivos, até os dias atuais, em que a população local enfrenta novos desafios de acesso aos serviços públicos.
No dia em que se comemoram os 190 anos de surgimento da imprensa negra no Brasil, é preciso lembrar também de outras formas de comunicação que ajudam a preservar a memória e divulgar as lutas do povo negro.
"A cobertura que a grande mídia ainda faz referentes aos quilombos e à população preta em geral ainda é muito defasada, não mostra o que a gente realmente é. Ainda temos muito o que avançar. Por isso, a importância de criar veículos como a TV Quilombo, a partir da visão da comunidade. Porque ninguém melhor do que contar a tua própria história do que tu mesmo. Então, quando tem essa narrativa do outro sobre a tua realidade, ou vai sair de forma errada ou de forma incompleta", explica Raimundo.
No começo de tudo, Raimundo e William não tinham equipamentos para gravar as coberturas que faziam no quilombo. Nada de celular, computador, microfone ou câmera de vídeo. Nas palavras deles, o que tinha era só a força de vontade mesmo. Era usar a imaginação e a criatividade para interagir com as pessoas. Quando conseguiram o primeiro celular, ele foi adaptado a uma câmera de papelão.
Vieram outros materiais improvisados e ancestrais da comunidade. Microfones de graveto, que, mesmo sem captar áudio, davam mais credibilidade às entrevistas. O bambu foi usado para construir um tripé para a câmera e o "bambu drone", uma vara de 10 metros em que o celular é amarrado com cipó. Os recursos ajudaram tanto a estabilizar a imagem quanto a gravar eventos por uma perspectiva do alto.
"Esses materiais modernos é que têm que se adaptar à nossa realidade e não o contrário. E, quando você inverte a lógica, indica que a maior tecnologia sempre foi e sempre será a ancestral. Porque é a única comunicação que não falha. A gente coloca os materiais ancestrais no meio da TV como uma forma das pessoas mais velhas olharem e se sentirem representadas", diz Raimundo.
Essa escolha ajudou a quebrar a resistência da comunidade, que no começo olhava desconfiada para a iniciativa dos jovens. Com o tempo, as pessoas passaram a chamá-los para fazer as coberturas e registrar os eventos. Mais um sinal de sucesso da iniciativa é que a equipe aumentou de dois para 40 jovens. Eles trabalham tanto na TV, quanto na Rádio Quilombo e nas redes sociais.
Na equipe da TV Quilombo, não há jornalistas profissionais, com diploma universitário. A possibilidade de estudar e ter esse tipo de formação está no horizonte, até para que o trabalho continue crescendo e surjam outras oportunidades de trabalho. A maior limitação nesse momento é ausência de determinadas instituições e serviços na região. Enquanto não podem contar com uma universidade mais acessível, os comunicadores do quilombo recorrem aos aprendizados ancestrais.
"Não temos uma formação acadêmica de jornalistas. Mas temos nossa formação de comunicadores populares, a partir da nossa realidade e território. Uma comunicação que a gente já nasce com ela. As comunidades mantêm viva a questão da oralidade e da passagem de saberes de uma geração para a outra. Tudo a gente aprendeu de forma autônoma a partir da necessidade, tentando romper com essas barreiras também", conta Raimundo.
O grupo não usa uma linguagem técnica, nem tem um manual de redação. O estilo de comunicação vai se desenvolvendo junto com a comunidade, no próprio processo de construção das reportagens. Isso ajuda a criar uma identificação maior com a TV e até a inspirar outros quilombos, que chamam a equipe para participar de coberturas, festas e entrevistas com anciãos locais. Recentemente, a equipe da TV Quilombo também teve a oportunidade de ir além do estado, cobrindo a Marcha das Margaridas em Brasília. Lá, além do evento, participou de um encontro para falar sobre racismo ambiental e trazer experiências da relação da comunidade com a natureza.
Para aperfeiçoar o trabalho que vem sendo feito, os jovens pedem doações via Pix no site oficial. No momento, não contam com nenhum tipo de patrocínio ou apoio mais consistente. Mas isso não impede que mantenham a missão de documentar, preservar e divulgar a cultura quilombola.
"É muito difícil as pessoas apoiarem esse tipo de projeto que denuncia racismo, violação de direitos, racismo ambiental e todas as formas de preconceito que existem contra comunidades quilombolas. Se fosse depender de ajuda financeira, o projeto nem tinha nascido. Nesse mundo moderno, para ter equipamento e internet melhores, temos nossos desafios. Ainda mais quando não temos acesso a políticas públicas de financiamento", analisa Raimundo. "O mais importante é que a gente vem crescendo sem mudar o nosso jeito de fazer comunicação popular."