O Chile vai às urnas neste domingo, 17, para votar, pela segunda vez em um pouco mais de um ano, a nova Constituição do país, que pode substituir a Carta Magna em vigor desde o regime de Augusto Pinochet (1973-1990). Em outubro de 2020, 78% do eleitorado votou a favor de uma mudança constituinte, na esperança de estabelecer as bases para um Estado mais forte nas questões sociais após os protestos que abalaram este país em 2019. Contudo, de lá para cá, os chilenos já rejeitaram um texto e se encaminham, de acordo com as pesquisas mais recentes, para reprovar mais um, que seria a última tentativa de mudança feita pelo governo do presidente Gabriel Boric. Em setembro de 2022, um primeiro documento, redigido por um órgão eleito pelo voto popular e dominado por vozes de esquerda, foi rejeitado por 61% dos eleitores. Para muitos chilenos, a redação era radical demais. O movimento e os partidos de esquerda defendiam um Estado mais forte, garantidor do acesso à saúde, educação, aposentadoria, direito ao aborto e o reconhecimento da justiça indígena, entre outros pontos.
A nova proposta foi redigida pela direita, eleita pelo voto popular e que terminou dominado pelo ultradireitista Partido Republicano, que seduziu com seu discurso de pulso firme contra a insegurança, a qual associa principalmente à migração venezuelana. O documento é mais conservador do que a Constituição que está em vigor e traz um tom polêmico em questões como aborto e migração, ordenando a expulsão "no menor tempo possível" dos estrangeiros que entram no Chile "de forma clandestina ou por passagens não autorizadas". É um aceno da direita aos setores que exigem linha dura ante o aumento da insegurança — e que é por eles associado à migração. Embora o novo texto reconheça pela primeira vez os povos indígenas, não estabelece normas claras que garantam sua autonomia, como propunha a Constituição rejeitada em 2022, que declarava o Chile como um estado “plurinacional”. Historicamente discriminados, os indígenas representam 12% da população do país. As últimas pesquisas de opinião do instituto Cadem mostram que 38% aprovariam a nova Constituição, um aumento de seis pontos em relação ao resultado do mês passado. Contudo, a rejeição é de 46%, três pontos percentuais a menos do que o obtido em novembro.
Apesar da atual Constituição ter passado por várias reformas que eliminaram suas normas mais autoritárias, ainda divide esse país de quase 20 milhões de habitantes, com 70% nascidos depois da ditadura. Se o texto for aprovado, o esquerdista Boric se comprometeu em cumprir a decisão das urnas. Porém, também já adiantou que essa é a última tentativa para mudar a Carta Magna em vigor no país. Se for negada por mais uma vez, não irá pressionar uma terceira reformulação, mas reforçou que pode tentar emendar o texto atual para incluir proposta populares, como a expansão dos direitos reprodutivos e ambientais. Christopher Mendonça, cientista politico e professor de relações internacionais do Ibmec Belo Horizonte, não acredita que o texto será aprovado e explica por que, mesmo querendo mudanças, os chilenos votam contra a modificação.
“O Chile é um país que tem uma maioria conservadora, então as eleições, principalmente parlamentares, indicam que há uma tendência daquele país em estabelecer contato com os públicos mais conservadores”, explica. O fato de Boric ser um presidente de centro-esquerda, com discurso muito ligado às questões sociais, faz com que haja um grande entrave. “Temos um poder Executivo direcionado para um lado e o poder Legislativo direcionado para o outro. Então, eles não têm uma consonante, não há uma ligação entre eles”, explica, acrescentando que a inconsistência ou inconformidade do público chileno em participar da política faz com que aqueles que participaram tivessem uma votação não representativa da maioria, que é conservadora. “Isso dificulta a instalação ou aprovação de uma Constituição que é pensada pelo presidente Boric como sendo mais inclusiva com questões sociais”. Vitelio Brustolin, professor de relações internacionais da UFF e pesquisador de Harvard, destaca que a nova proposta “coloca em seu centro os direitos de propriedade privada e regras rígidas sobre imigração e aborto, ou a manutenção da versão atual, de 1980, que entrou em vigor durante o governo Pinochet”. O novo texto não reverte, por exemplo, a privatização da água, e alguns críticos afirmam que isso ameaçaria a agricultura no Chile.
O especialista aponta que Boric ficou fragilizado após a primeira rejeição, em setembro de 2022, porque ele se elegeu com uma plataforma eleitoral de esquerda, em alinhamento com a assembleia constituinte do ano anterior. “Uma nova rejeição neste momento não o afetaria diretamente, pois a nova assembleia constituinte é de direita, mas afetaria todo o país pelo impasse em resolver essa questão, ao mesmo tempo em que deixaria ainda mais evidentes as dificuldades de governança no Chile.” Mendonça enfatiza que, mesmo que o texto não seja aprovado, o líder chileno não será afetado do ponto de vista formal e poderá terminar seu mandato sem nenhum problema. Por outro lado, ele ficará abalado do ponto de vista político, uma vez que sua eleição foi baseada na reformulação da proposta. “Isso fragiliza ele como um governante, sobretudo como mediador de interesses dentro do próprio Chile”.
Se os resultados das pesquisas não se concretizarem e a maioria votar a favor da nova Constituição, Brustolin, aponta quais devem ser as consequências. “Podemos esperar um país dividido, pois foi a insatisfação popular e os protestos em 2019 que levaram à propositura de uma nova constituição no país”, diz. Ele reforça que um texto que se assemelha ao de 1980, ou o reforça, certamente não encontrará respaldo em uma parcela significativa da população. Mendonça acrescenta que a implantação desta nova constituição seria uma mudança muito importante e profunda nas diretrizes de costumes dentro do Chile. “Acredito que esse texto não passará, mas, embora não seja impossível que seja aprovado, é muito pouco provável que ele ganhe projeção dentro da estrutura política chilena”.