No dia 26 de janeiro de 2023, a menina de 2 anos chegou sem vida em uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), com lesões espalhadas pelo corpo e marcas de abuso sexual, prontuário médico com histórico de 30 atendimentos e um pedido de guarda negado ao pai. Sophia morreu com dois anos em Campo Grande
Arquivo pessoal/ Reprodução
Agressões, negligência e omissão: investigações revelaram que a violência foi uma constante na vida da pequena Sophia de Jesus O'campo, de apenas dois anos, até ela ser assassinada, há um ano. No dia 26 de janeiro de 2023, a menina de 2 anos chegou sem vida em uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), com lesões espalhadas pelo corpo e marcas de abuso sexual, prontuário médico com histórico de 30 atendimentos e um pedido de guarda negado ao pai.
Doze meses após a morte de Sophia, o g1 relembra os desdobramentos e indícios encontrados pela polícia que apontaram a mãe, Stephanie de Jesus Da Silva, e padrasto, Christian Campoçano Leitheim, como autores do crime.
O pai de Sophia, Jean O'Campo, viajou com o companheiro Igor Andrade para Santa Catarina, para não passar a data em Campo Grande. Muito abalado, ele preferiu não se pronunciar sobre o assunto. No entanto, a assistente de acusação do pai, Janice Andrade, afirmou que busca a punição dos acusados e reforço na segurança para que casos parecidos não se repitam.
Nesta reportagem, você vai encontrar:
O caso
Sophia "pediu ajuda" antes de ser morta
Pai denuncia homofobia
Mãe disse que nunca machucaria a filha
Padrasto negou acusações de estupro
Perícia nos celulares e julgamento adiado
Sophia morreu aos 2 anos.
Arquivo Pessoal/Reprodução
O caso
Sophia de Jesus O'campo morreu no dia 26 de janeiro de 2023, uma quinta-feira. Já era de noite quando Stephanie de Jesus Da Silva, de 24 anos, chegou com a filha nos braços na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Bairro Coronel Antonino, em Campo Grande.
Stephanie foi até a unidade de saúde com um carro de aplicativo. Posteriormente, o motorista falaria para a polícia que a menina ficou imóvel no colo da mãe durante todo o trajeto.
A mãe disse para as enfermeiras que a menina estava dormindo, mas quando Sophia foi atendida, a médica constatou que ela já estava morta. Além disso, a profissional de saúde afirmou que a criança tinha indícios de ter sido abusada sexualmente, porque estava com o hímen rompido.
Stephanie foi presa em flagrante na UPA e Christian, em casa.
Menina apresentava diversos ferimentos pelo corpo
Arquivo pessoal/ Reprodução
Jean preferiu não passar o aniversário da morte da filha em Campo Grande. A assistente de acusação dele, Janice Andrade, relatou que é "uma data muito complicada".
"É uma situação, é um assassinato de uma criança de dois anos e sete meses pela própria mãe, que deveria proteger pelo agenditor e pelo padrasto. Esse tipo de crime mexe muito com a gente, que a gente é mulher, irmã, etc.", afirmou.
Sophia "pediu ajuda" antes de ser morta
Após a morte de Sophia, a Polícia Civil descobriu que no prontuário médico da menina havia 30 atendimentos médicos em unidades de saúde da capital, uma delas por fraturar a tíbia. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau), vários desses atendimentos foi em uma única ida à unidade de saúde, como acolhimento, triagem, consulta médica e medicação.
Médico legista afirmou em relatório que Sophia morreu pelo menos 7 horas antes de ser levada pela mãe até a UPA. O laudo de necropsia emitido pelo Instituto de Medicina e Odontologia Legal (IMOL) apontou que a morte foi causada por um trauma na coluna cervical, que evoluiu para o acúmulo de sangue entre o pulmão e a parede torácica. O documento ainda diz que a menina sofreu "violência sexual não recente".
Segundo a Polícia Civil, as agressões contra Sophia foram denunciadas por duas vezes: uma em março e outra novembro. Os casos passaram pela esfera criminal e depois foram enviados ao judiciário, mas não tiveram resolução antes dela morrer.
Stephanie e Christian ficaram em silêncio em audiência
Jéssica Benitez
A situação de Sophia também foi denunciada ao Conselho Tutelar. A conselheira responsável pelo caso revelou que o pai da menina, Jean O'campo, procurou ajuda em maio de 2022. Na época, ele contou que a filha passava fome e era agredida, e também pediu a guarda dela.
Conselho Tutelar alegou que visitou a casa de Sophia, mas a criança não aparentava estar ferida, sem alimentação ou em situação degradante. Ainda assim, o caso foi registrado na polícia, mas as testemunhas sequer foram chamadas para prestar depoimento.
Após as prisões, em janeiro de 2023, a polícia encontrou a casa de Chistian e Sthephanie em situação insalubre, cheia de lixo, com roupas penduradas no varal, brinquedos jogados no chão e fezes de animais espalhadas pela varanda. Veja abaixo.
Casa foi encontrada em situação insalubre.
José Câmara
Brinquedos ficaram jogados no chão da casa.
José Câmara
Pai denuncia homofobia
Jean O'campo separou de Sthephanie quando Sophia tinha 2 meses e começou a namorar Igor de Andrade, padrinho da criança.
Ao g1, Jean relatou que o casal tentou conseguir a guarda de Sophia após perceberem as agressões, mas um dos impedimentos que encontrou foi a homofobia.
"Teve esse preconceito por ser dois pais, porque quando você quer ajudar, as coisas acontecem, ainda mais no estado em que a minha filha chegava em casa. Eu mostrava fotos dos hematomas, mostrava a neném, e nada era feito", lamentou.
Pai de Sophia à esquerda e o namorado dele, à direita.
Reprodução/TVMorena
De acordo com a Polícia Civil, o pai da criança realizou duas denúncias de maus-tratos em 2022 e ambos os inquéritos policiais foram concluídos e encaminhados ao Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS).
Na época, g1 procurou o MPMS para saber o andamento do processo. Em nota, o Ministério Público Estadual informou que um dos processos foi arquivado após a avó, a mãe e o pai da criança serem ouvidos. A outra ocorrência não chegou ao órgão.
Igor também afirmou que Sthephanie foi homofóbica e que não queria deixar Sophia sob os cuidados de dois homens. Segundo Igor, uma audiência sobre os casos foi marcada, mas a mãe não compareceu.
À esquerda, Jean, e à direita Igor de Andrade, juntos com Sophia.
Arquivo Pessoal
"Passamos por vários lugares para entrar com pedido de guarda da neném. A única coisa que a gente pedia era pra tirar a menina de lá. A mulher [mãe] chegou a ser presa no ano passado por maus-tratos aos animais. Com isso, fomos atrás novamente para mostrar a situação insalubre que a neném vivia, e aí, vinha a mesma resposta: 'tem que aguardar'", disse Igor.
Mãe disse que nunca machucaria a filha
Stephanie e Christian foram ouvidos pela primeira vez no dia 5 de dezembro, em audiência realizada em Campo Grande. Na ocasião, o ex casal trocou acusações e contaram duas versões sobre o dia que antecedeu a morte da criança. Na noite do dia 25 de janeiro, a menina já estava passando mal, mas os dois não a levaram para ser atendida por um médico e, invés disso, receberam amigos em casa.
A primeira a sentar no banco dos réus foi Stephanie. Aos prantos, ela declarou arrependimento e admitiu culpa por ter sido omissa com a filha. Relatou que "nunca agrediria Sophia", mas também não denunciou o marido porque tinha medo de ficar sem a guarda da criança de 2 anos e da bebê de 6 meses que teve com Christian.
"Era (agressivo) com todo mundo, era muito explosivo quando ficava com raiva. Eu me intrometia quando ele ia bater e eu acabava sendo agredida também. Eu entrava na frente pra ele não ser agressivo e eu acabava pagando o pato", disse.
Chorando muito, mãe relata tudo o que aconteceu no dia da morte da filha
Gabrielle Tavares
Segundo Stephanie, ela havia trabalhado o dia todo e Christian tinha ficado com as crianças, como era a dinâmica normal do casal.
Quando chegou em casa, por volta das 19h, relatou que tentou levar a filha para o hospital, mas "Christian não deixou". A mulher medicou Sophia com um remédio contra vômito e a deixou dormindo. Em seguida, Cristian teria dito que alguns amigos dele iriam até lá.
Nas duas versões, o casal só foi dormir por volta das 4h.
No dia 26, Stephanie relatou que Christian ajudou ela a cuidar das crianças durante o dia todo. A menina se queixava de dores, mas depois que a medicaram novamente com o remédio de vômito, ela teria melhorado.
Por volta das 16h, a mãe disse que decidiu levar Sophia para a Upa porque ela não parava de reclamar de dor na barriga. Na versão de Stephanie, ela ligou para a mãe para pedir ajuda, enquanto Christian levou a criança para o banheiro.
Suspeitos de cometerem o crime tiveram a prisão temporária convertida em preventiva
Redes sociais
Ela acredita que foi neste momento que ele pode ter a matado, porque quando teria voltado, Sophia já estava com o corpo desfalecido. "Quando ele levou ela pro banheiro, trouxe ela já sem reação no ombro. Aí ele deitou ela no colchão e começou a fazer respiração boca boca", disse.
No fim do depoimento, foi perguntando a mãe de Sophia o que ela falaria para a filha e a imagem que ela leva da menina.
"Pediria mil perdões, se pudesse voltar no tempo faria tudo diferente nunca deixaria ninguém fazer nada com ela, estaria sempre com ela em todos os momentos da vida dela. Sophia era uma menina meiga, carinhosa, que é tudo pra minha vida. Minha vida acabou sem ela, eu nunca mais vou ser a mesma sem a minha filha. Nunca vou deixar de amar ela, hoje tá no céu e olha por mim eu tenho certeza disso, porque ela sabe o quanto eu sofri, o quanto eu ainda sofro e vou sofrer todos os dias", finalizou a acusada.
Padrasto negou acusações de estupro
Já Christian afirmou que Stephanie era agressiva e apenas "revidava" as agressões. De acordo com ele, a ex "sempre foi explosiva" e batia muito nas filhas. O réu chegou a citar ocasião em que bateu na mãe de Sophia.
"Ela deve ter comentado sobre um olho roxo. Aconteceu porque ela arremessou a Sophia no sofá e bateu na bebê, que tinha de 5 meses. Aí não aguentei e dei um murro nela", declarou.
Na versão de Christian sobre a noite que antecedeu a morte da criança, Stephanie que não quis levar Sophia até o hospital e preferiu medicar ela com o remédio para vômito. Em seguida, tanto ele, quanto Stephanie e outros três amigos homens, usaram drogas e beberam bebidas alcoólicas.
Christian Campocano Leitheim entra na audiência para relatar sua versão
Gabrielle Tavares
"Na época, eu fumava e acabei cheirando pó também mas vício (em drogas) não. Eu ficava triste quando usava, só usava porque me ofereciam, me influenciavam. O Cristian era viciado em cocaína", declarou Stephanie.
Em certo momento, Stephanie teria saído com um dos amigos para comprarem drogas, enquanto as crianças dormiam em casa. No entanto, Christian declarou que ninguém entrou na residência durante toda a noite.
Nas duas versões, o casal só foi dormir por volta das 4h. No entanto, Christian afirmou que dormiu o dia todo, só acordou às 16h quando Stephanie o chamou. "Quando eu acordei, ela (Sophia) tava com a boca roxa e convulsionando. Ai elas foram pra Upa e quando ela me ligou, só disse que a Sophia tinha falecido, não disse detalhes".
Mãe e padrasto de Sophia não falaram durante audiência.
Jéssica Benitez
Sobre as acusações de estupro, o padrasto nega qualquer envolvimento. "Quando eu cheguei no presídio, a primeira coisa que fiz foi solicitar um exame médico pra provar que eu não tinha cometido tal ato".
Perícia nos celulares e julgamento adiado
Um relatório elaborado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), a partir da troca de mensagens entre Christian Campoçano Leitheim e Stéphanie de Jesus evidencia a rotina de violência.
Em setembro, o Gaeco assumiu a missão de desbloquear o aparelho dos réus após despacho feito pelo juiz Aluízio Pereira dos Santos, da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande. O g1 teve acesso ao documento que revela sessões de torturas e até ameaças feitas pelo padrasto sobre "quebrar o pescoço" da menina e dar "chicotadas cabulosas".
Mensagens trocadas entre mãe e padrasto de Sophia.
Reprodução
Nas conversas, marido e mulher revelam uma série de agressões e ameaças não só a Sophia, mas também ao irmão mais velho dela, filho de Christian, de 5 anos. Em uma das mensagens apresentadas no documento, o padrasto conta que bateu de cinto em Sophia: "foram chicotadas cabulosas".
Christian descreve que uma das agressões aconteceram porque a menina não queria comer, sendo colocada em pé em volta do carrinho do outro bebê até que comesse. A mãe de Sophia responde: "deixa ela sem comer, deixa passar fome" e o padrasto afirma que vai fazer ela comer: "ela vai comer, vai comer, está de palhaçada comigo".
Ele ainda diz: "Eles apanharam de cinto hoje, eu não vou nem fazer questão de encostar a mão, vai apanhar só de cinto agora. Só que foi umas chicotadas cabulosas (risos) estralou, sem ser o cinto de couro. Se fosse o cinto de couro essa hora estava até sangrando com as chicotadas que eu dei neles".
Mensagens trocadas entre mãe e padrasto de Sophia.
Reprodução
No dia 16 de novembro de 2022, o próprio padrasto nota que a menina está com a boca sangrando e com um galo na cabeça depois de mais uma sessão de espancamento. No mesmo mês, a mãe pergunta se o marido mordeu Sophia. "Mordi ela. Mas esse foi quando a gente tava brincando. Sabe que não controlo a mordida, ela é macia demais".
O documento ainda apresenta mensagens trocadas pelo casal no dia em que Sophia foi levada sem vida para um posto de saúde da cidade. As mensagens reforçam a tentativa de Stéphanie em encobrir as agressões ao perguntar ao marido o que deveria falar com a polícia, a resposta deixa claro a vida de violência da pequena. "Fala que se machucou no escorregador do parquinho, igual da outra vez".
Os réus vão responder por homicídio empregado por maneira cruel e motivo fútil. Christian também responderá por estupro e Stephanie, por omissão.
Advogada e presidente da CDCA, Maria Isabela, fala sobre o Caso Sophia
Em dezembro de 2023, o juiz Aluízio Pereira dos Santos anunciou que Stephani e Christian seriam julgados em júri popular nos dias 12, 13 e 14 de março de 2024.
No entanto, o julgamento foi retirado de pauta após pedido de apelações das defesas dos réus neste mês. Com isso, a data para o julgamento não é mais fixada. Após análise, o juiz deve marcar outra data para o júri.
Ambas as apelações foram ingressadas no dia 19 de dezembro, mas o magistrado as aceitou o recurso no dia 9 de janeiro e no dia 10, decidiu retirar o júri de pauta, pelo menos até que os dois apresentem novamente razões e contrarrazões.
Nos pedidos de recursos, Stephanie e Christian alegaram que precisam "melhorar situação processual". Os réus pretendem incluir novos argumentos ao processo.
No entanto, para a assistente de acusação do pai, Janice Andrade, o recuso dos réus não deve interferir no decisão do júri.
"É um processo muito pesado, mas a gente conseguiu várias, várias decisões favoráveis. Acho que a justiça depois do acontecido, acredito que fez o trabalho a contente, está fazendo o trabalho. Os promotores estão empenhados", ressaltou.
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