As eleições de 2024 nos Estados Unidos prometem uma disputa histórica. Não à toa, o interesse público pelo tema despertou no mundo inteiro – afinal de contas, o mandatário da Casa Branca frequentemente se envolve em decisões que vão muito além do seu próprio país. Também nos últimos dias, cresceu o número de amigos e curiosos que têm me perguntado quem sairá vencedor da disputa entre Donald Trump e Kamala Harris. Ainda que as pesquisas apontem empate técnico e cada bolha eleitoral se sinta em larga vantagem, a resposta é simples: vai dar a lógica.
Mas que lógica é essa? Na verdade, são várias. A eleição deste ano nos Estados Unidos é marcada por um antagonismo sem precedentes na história moderna americana, com uma polarização que passou dos limites conhecidos para um cenário democrático. Parece loucura, mas, de janeiro até aqui, já vimos de tudo: Trump arrasou as primárias republicanas, sofreu uma tentativa de assassinato, venceu e foi vencido nos dois debates presidenciais. Do lado democrata, Joe Biden arrasou as primárias, foi forçado a se retirar do pleito, Kamala Harris entrou quebrando recordes de doações, mas pode ver o fôlego se esgotar na reta final.
Do lado republicano, a lógica é a seguinte: Donald Trump passou os últimos quatro anos na oposição, criticando – muitas vezes com razão, outras nem tanto – os indicadores do atual governo. Se o índice de desemprego é baixo, a inflação tem crescido aos maiores patamares desde a década de 1970. O custo de vida também é maior que quatro anos atrás, e a economia é a principal preocupação do eleitorado local – 28% do público escolhe o tema como mais importante, segundo a última pesquisa Reuters/Ipsos.
Trump também tem certa razão quando critica os índices de imigração ilegal nos Estados Unidos, ainda mais com Kamala Harris sendo a "czar das fronteiras" do governo Joe Biden. Ainda que os números sejam relativamente parecidos com os que foram registrados durante o período do republicano na Casa Branca, o problema não foi resolvido. É claro que há diferentes remédios para a mesma dor, mas a posição de oposicionista e a promessa de uma solução firme e rápida – por mais irreal que seja – pode conquistar muitos votos.
No cenário internacional, Donald Trump se deleita com as guerras no Leste Europeu e no Oriente Médio. Primeiro porque elas eclodiram no governo Biden, dando a entender que os democratas não tiveram pulso firme na política internacional. Isto, porém, é uma meia verdade, já que estamos tratando de conflitos que se arrastam há décadas e foram negligenciados pelos dois partidos igualmente. Mas também pesa que o dinheiro do contribuinte americano tem sido enviado em larga escala para que a Ucrânia lute uma guerra na qual ela não tem condições de vencer.
Embora a opinião pública seja majoritariamente favorável à Ucrânia e a Israel, o argumento do bilionário é contundente: os impostos pagos pelos cidadãos americanos não deveriam ser retornados em algo tangível para a população local? Certamente, o argumento pode ressoar na cabeça dos eleitores, ainda que, em um eventual retorno de Trump à Casa Branca, o cenário possa permanecer bem parecido com o atual.
Há também a lógica envolvendo a popularidade de Trump. Mesmo diante de centenas de acusações e algumas condenações, incluindo na esfera criminal, o apoio recebido nas ruas nunca diminuiu. Pelo contrário, seu público se mostrou extremamente comprometido e disposto a comprar a teoria de que o ex-presidente é alvo de uma perseguição judicial do chamado "deep state". Há muitos méritos no atual candidato em ter cativado uma parte do eleitorado de maneira definitiva, algo quase inédito na política local. Mas resta saber se ele é capaz de furar a bolha e conquistar a parte que falta para vencer as eleições.
Ser oposição é fácil, ainda mais quando o partido Republicano consegue se escorar nas dificuldades notáveis do partido Democrata, que não conseguiu dar atenção necessária a vários dos problemas que mais afligem a população estadunidense. É o caso do meio-oeste, que, presidente após presidente, se vê abandonado dentro do contexto da globalização. É claro que podemos jogar parte da culpa na própria oposição, que intencionalmente freou projetos como o da segurança das fronteiras do país, mas, no fim das contas, o que importa são os resultados.
Joe Biden foi eleito em 2020 tendo como principal plataforma a oposição a Donald Trump. Isso funcionou a nível eleitoral, mas para garantir a reeleição, é necessário um governo que tenha direcionamento preciso e entregue dados que o eleitor possa de fato sentir em seu dia a dia – o que não se concretizou. A situação faz o mesmo eleitor que rejeitou Trump em 2020 se perguntar agora: será que não estaríamos melhores se ele tivesse continuado à frente do poder? Essa é uma pergunta impossível de ser respondida, mas que muitos podem pagar para ver neste 5 de novembro.
Mas há também a lógica da vitória democrata, tão forte quanto a oposta. Começamos pela própria rejeição de Donald Trump, frequentemente rejeitado pela maioria do eleitorado dos Estados Unidos. Até hoje, o partido Republicano passou por quatro eleições sob sua batuta: venceu as presidenciais em 2016, perdeu em 2020 e foi considerado derrotado em 2018 e 2022. Sua porcentagem de vitórias é de apenas 25%.
A questão é mais sobre como os democratas podem convencer os indecisos e até parte dos republicanos que Trump não é adequado para o cargo. Isso exige o discurso ideal em cada situação. Tim Walz, por exemplo, parecia ter acertado quando usou o termo "weird" para atacar o rival. Já Joe Biden errou feio quando chamou os eleitores trumpistas de "lixo".
A rejeição contra o oposicionista também tem um ponto óbvio. Ainda que a justiça americana não tenha se posicionado oficialmente, Donald Trump ficou marcado na opinião pública como um dos responsáveis pelo ataque ao Capitólio em janeiro de 2021. Em que pese as diferenças entre democratas e republicanos, os eleitores desses dois partidos possuem um valor em comum: o respeito à democracia e ao Estado de Direito. Os tribunais podem até inocentar Trump, mas dificilmente sua imagem será desatrelada dos protestos que ameaçaram uma longa tradição republicana. Neste caso, o voto em Kamala pode ser uma virada de página definitiva na história política americana.
Kamala conta com um trunfo importante em não se chamar Joe Biden. A nova candidata conseguiu revigorar a campanha presidencial e conseguiu apresentar propostas para um eventual novo governo. Com razão, os republicanos questionam o porquê de nenhuma dessas propostas terem sido apresentadas nos últimos quatro anos, mas a ex-senadora parece ter encontrado brechas para se distanciar dessas acusações.
A atual vice-presidente também conseguiu ficar bem longe da imagem de "esquerdista" que Trump buscou incutir a todo momento. Parte disso vem da união que Kamala Harris conseguiu montar dentro do partido Democrata e até mesmo com dissidentes republicanos, com nomes tradicionais do centro da política americana. Se há algo que as duas siglas aprenderam dos pleitos de 2016 e 2020 é de que a fragmentação interna pode e deve ser decisiva para a vitória do lado contrário.
Da porta para fora, Kamala busca ser a candidata da razoabilidade: frequentemente atacando Vladimir Putin, considerado ídolo e fã de Trump, além de um posicionamento levemente mais consistente no Oriente Médio. A aliança estratégica com Israel deve continuar, mas Benjamin Netanyahu foi alertado contra abusos de força na região.
Os democratas apostam que, agora, Kamala Harris pode ser eleita e levar adiante um projeto que não se baseie apenas na rejeição ao seu principal opositor. Isso pode ser decisivo. São muitas as lógicas que podem eleger o próximo presidente americano. Resta saber qual delas irá prevalecer neste 5 de novembro.