Para a última geração, a grande guerra civil que marcou as recentes décadas foi a guerra na Síria. Sendo um conflito multifacetado e iniciado em março de 2011, essa guerra causou a morte de mais de 600 mil pessoas, transformou mais de 6 milhões de sírios em refugiados e deslocou quase 7 milhões internamente em um processo geopolítico extremamente complicado com múltiplos beligerantes. Apesar do alto grau de complexidade envolvendo cada uma das partes, é necessário entender que são três frentes principais de batalha e que transformaram o território sírio em uma colcha de retalhos de alianças geopolíticas e etnorreligiosas das mais variadas.
O governo central de Bashar al-Assad, herdeiro de uma ditadura iniciada em 1971 por seu pai, sofreu fortes derrotas no início da década passada, perdendo o controle territorial de mais de 40% de toda a Síria e correndo grandes riscos de ser derrubado e também morto. A família Assad, de origem alauíta, ramificação dentro da vertente xiita do islamismo, comanda há mais de 50 anos um país majoritariamente sunita e etnicamente muito diverso. Mesmo sendo apenas 10% da população, os xiitas no governo fizeram alianças poderosas com o também xiita Irã e sua proxy mais valiosa, o Hezbollah libanês. Fora esses dois fortes aliados regionais, Assad tem o respaldo dos russos através da longa amizade com Vladimir Putin, resquícios das relações amistosas entre Síria e União Soviética.
No extremo nordeste do país a população curda, majoritariamente sunita e de outra origem étnica e linguística que não a dos sírios-árabes, também aproveitou as instabilidades da guerra civil para administrar seu próprio território, recebendo auxílio militar e estratégico dos Estados Unidos, Reino Unido e outros países ocidentais. Há também os rebeldes de diversas vertentes ideológicas, mas com muitos Jihadistas e terroristas, que defendem a formação de uma teocracia islâmica sunita no lugar de uma república árabe secular. Parte desse grupo financiado fortemente pela Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, focado em desestabilizar seu desafeto político Assad, e acabar com qualquer chance de separatismo curdo que possa atravessar até as suas fronteiras.
A grande pergunta feita por muitos é a seguinte: por que, depois de quase cinco anos, o conflito despertou? A resposta está mais ligada ao que se passa fora da Síria do que dentro dela. A sustentação do governo de Assad é baseada em três pilares de diferentes tamanhos e que garantiram a retomada de grande parte dos territórios, e onde vive a maioria das pessoas. O Hezbollah, grupo fundamentalista terrorista xiita libanês, com um exército paramilitar de quase 100 mil homens e acesso à fronteira com a Síria, pôde auxiliar sempre que necessário o ditador sírio em operações mais pontuais. O Hezbollah, todavia, se envolveu em um conflito de grande escada com Israel, perdeu muitos homens e considerável parte da sua própria estrutura para guerrear no Líbano. Consequentemente, se tornou impotente para dar a retaguarda necessária ao exército sírio.
A República Islâmica do Irã é o grande apoiador militar ao governo de Assad há muitas décadas. Sendo um dos poucos países de maioria xiita no mundo, o Irã tem interesse direto em manter uma liderança xiita dentro de um país árabe, mesmo de maioria sunita, para aumentar sua influência em toda a região. Os iranianos, todavia, estão envolvidos em um conflito indireto e direto com os israelenses, seja através de suas proxies, Hamas, Houthis, Hezbollah e afins, seja através de disparos diretos de drones e mísseis ao território israelense. Com as retaliações de Israel, as atenções da Guarda Revolucionária Iraniana estão voltadas inteiramente para as questões de segurança nacional, ignorando o respaldo tão fundamental para o governo de Assad.
Por fim, a Federação Russa é a maior potência militar a apoiar o ditador sírio. A intervenção de Putin em Alepo e em outras localidades para repelir os rebeldes é a principal razão da manutenção da dinastia Assad no governo em Damasco. Sem os fortes bombardeios russos e o compartilhamento de inteligência, a contraofensiva de Assad não seria tão bem-sucedida. Os russos, todavia, enfrentam uma batalha longa e exaustiva na Ucrânia, onde seus recursos humanos e militares são perdidos dia após dia, e sem excedente suficiente para continuar auxiliando Assad da mesma maneira como fez até 2022.
Ao mesmo tempo que os aliados do governo sírio estão enfraquecidos, o principal aliado dos rebeldes jihadistas, a Turquia, aproveitou esse momento para fortalecê-los. O avanço desde a cidade síria de Idlib em direção a Alepo, segunda maior cidade do país, acionou todos os alertas em Damasco sobre a possibilidade de um recomeço violento de uma das guerras mais tenebrosas da atualidade. A intervenção pontual russa com bombardeios ajudou a dispersar alguns jihadistas, mas parece ser uma medida meramente paliativa em uma terra já arrasada. A situação hoje se mostra um pouco mais estável que há dois dias, porém a capacidade de escalada presente em um dos maiores barris de pólvora do mundo, como a Síria, é de assustar qualquer analista que acompanha esse conflito há mais de uma década.