Em 2024, o Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul comemorou uma década de implementação do Depoimento Especial, uma prática que revolucionou a forma como crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência são ouvidos no sistema de justiça. A iniciativa, baseada na Lei nº 13.431/2017 e nas diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tornou-se um marco na proteção de direitos e no combate à revitimização.
Antes da adoção do Depoimento Especial, crianças e adolescentes frequentemente enfrentavam situações traumatizantes ao prestar depoimentos em audiências tradicionais. Muitas vezes, eram submetidos a múltiplos interrogatórios por diferentes agentes do sistema de justiça, revivendo situações dolorosas. O Depoimento Especial surgiu como resposta a essa realidade, ao garantir um ambiente acolhedor, mediado por profissionais capacitados, como psicólogos e assistentes sociais.
Esse procedimento é realizado em salas especialmente projetadas, equipadas com tecnologia de gravação audiovisual, permitindo que o depoimento seja colhido de maneira humanizada e, ao mesmo tempo, útil para o processo judicial. Assim, evita-se o contato direto entre a criança ou adolescente e os envolvidos no caso, promovendo maior segurança emocional.
Desde sua implementação, o Depoimento Especial trouxe resultados significativos para o Judiciário sul-mato-grossense. Além disso, a prática consolidou uma rede de proteção social no estado, fortalecendo a articulação entre o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a polícia e a assistência social.
Outro destaque é o investimento na capacitação continuada de profissionais. Nos últimos 10 anos, diversos servidores e técnicos passaram por treinamentos especializados promovidos pela Coordenadoria da Infância e Juventude (CIJ), alinhados às melhores práticas internacionais.
O pontapé inicial ocorreu em abril de 2014, por meio da Portaria nº 548, quando o Tribunal de Justiça criou a Central de Depoimento Especial em Campo Grande e estabeleceu o procedimento deste tipo de depoimento no âmbito do Poder Judiciário. A Central, inaugurada em 23 de maio de 2014, tem, ao longo desta década de funcionamento, auxiliado os juízes de diversas varas do Fórum da capital na oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
A implantação do Depoimento Especial no TJMS contou com o empenho e a dedicação da Desa. Maria Isabel de Matos Rocha, então Coordenadora da Infância e Juventude, cuja carreira foi construída em defesa da infância e da juventude.
Atualmente, existem salas de Depoimento Especial em 55 comarcas, duas delas em Campo Grande, totalizando 56 salas em funcionamento. Em ação recente, vinculada à Coordenadoria da Infância e Juventude, o Comitê Estadual de Monitoramento, Acompanhamento e Assistência Operacional do Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência realizou visita técnica a todas as salas de Depoimento Especial do estado.
As vistorias foram realizadas para adequar as salas do Tribunal de Justiça à metodologia prevista pelo protocolo brasileiro de entrevista forense, referendado pelo Conselho Nacional de Justiça para a aplicação dos Depoimentos Especiais.
Destacando o caráter inédito dessa iniciativa do TJMS, o presidente do Comitê, juiz Giuliano Máximo Martins, afirmou que, durante as visitas, “Nós pudemos ver que o nosso Tribunal de Justiça está realmente cumprindo o que consta não só na legislação como no protocolo, até porque as solicitações e sugestões apresentadas foram pequenas e as problemáticas existentes também são mínimas”.
A coordenadora da Infância, Desa. Elizabete Anache, comenta que o trabalho do Comitê “tem o objetivo de apoiar juízes e equipes técnicas, orientando-os quanto ao cumprimento do protocolo brasileiro de entrevista forense, proporcionando atendimento adequado e humanizado a crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência”.
Em novembro, o relatório da vistoria, apontando os ajustes necessários, foi entregue ao presidente do Tribunal de Justiça, Des. Sérgio Fernandes Martins. Além disso, a equipe da Coordenadoria da Infância e da Juventude (CIJ) do Tribunal desenvolveu uma cartilha sobre o Depoimento Especial, com fundamentos da Lei nº 13.431/2017 e do Decreto nº 9.603/2018, assim como do protocolo brasileiro de entrevista forense.
O material traz informações compatíveis com o entendimento das crianças, em uma linguagem simples e acolhedora. A cartilha, a primeira de autoria do TJMS sobre o assunto, apresenta ainda como inovação um vídeo que pode ser acessado por meio de QR Code.
A juíza Fernanda Giacobo, da Comarca de Iguatemi, avalia a técnica como indispensável: “O Depoimento Especial é uma técnica extremamente importante para minimizar os efeitos da revitimização. A criança e o adolescente já estão traumatizados, e fazer com que precisem reviver tal momento é muito doloroso. Por isso, acredito que ter um local especial e planejado para recebê-los, com profissionais capacitados — não apenas os servidores que realizarão o depoimento, mas todos os que trabalham no ambiente do Fórum — faz com que tais efeitos sejam diminuídos. Além disso, o fato de não permanecerem em uma sala com o juiz, o promotor, a defesa e outros servidores também é essencial para que possam falar sobre o que aconteceu da forma menos dolorosa”.
Desde que começou a exercer a magistratura no TJMS, a juíza utiliza a técnica do Depoimento Especial: “Lembro que, quando fui fazer meu exame psicotécnico, ainda em uma das etapas do concurso para ingresso na carreira, enquanto esperava, vi a cartilha do Depoimento Especial na secretaria e fiquei muito feliz porque, de fato, o nosso Tribunal é extremamente avançado nesse ponto. Também no curso de formação, pudemos conhecer a Central do Depoimento Especial e tivemos aulas teóricas e práticas”.
A oitiva por Depoimento Especial é comumente utilizada pela magistrada quando a criança ou adolescente foi vítima de abuso sexual, físico ou psicológico; quando testemunhou a violência contra a própria mãe ou irmã no âmbito doméstico; e também em processos cíveis, quando se discute a guarda dessa criança e/ou adolescente. “De forma excepcional, já adotei a oitiva por Depoimento Especial mesmo quando a vítima e/ou testemunha da violência era adolescente e, quando de sua oitiva, já havia completado dezoito anos, e também quando era pessoa com deficiência, ainda que com idade acima dos 18 anos incompletos”, completa a magistrada.
Estatísticas — De acordo com dados da Assessoria de Planejamento do TJMS, até o dia 10 de dezembro de 2024, foram realizadas 2.111 audiências nas comarcas do estado ao longo de 2024, das quais 1.350 foram depoimentos especiais prestados, 182 audiências de instrução e julgamento com depoimento especial por videoconferência e 579 audiências de instrução e julgamento com depoimento especial. De 2015 para cá, o total de audiências realizadas com Depoimento Especial chega a 10.375.
Depoimento Especial — Abrigado pelos princípios constitucionais da proteção integral e da prioridade absoluta, o Depoimento Especial se tornou um instrumento de proteção às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Por meio da Lei nº 13.431, de 2017, o Depoimento Especial tornou-se protocolo obrigatório para a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes, e a implantação de salas de Depoimento Especial em todas as comarcas do território nacional foi determinada pela Resolução nº 299/2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Salas Especiais — Um dos pontos mais significativos para o Depoimento Especial é a infraestrutura dos locais onde são realizados os atendimentos a crianças e adolescentes, que devem atentar para o isolamento acústico e visual. Outros pontos que devem compor o espaço são o uso de cores claras, um ambiente aconchegante e mobiliário adequado, dispostos de modo a facilitar a interação entre a criança e o entrevistador, sem distrações. Além disso, as salas devem ser equipadas com um sistema de áudio e vídeo de alta qualidade para garantir a integridade do depoimento. Recursos para o alívio do estresse, como almofadas, brinquedos e materiais de desenho, podem ser disponibilizados para ajudar a criança a relaxar.