Aminah Nahan é uma das brasileiras que voltou da Turquia. Casada com um homem sírio refugiado – há uma década o país está em guerra –, Aminah vivia há quase quatro anos em Gazentemp.
O retorno não planejado ao Brasil aflige não só ela, mas a maioria dos passageiros. É um misto de sentimentos. De um lado, voltar ao Brasil é abandonar a família, amigos, o lar e renunciar aos planos e sonhos. De outro, uma chance de sobreviver e recomeçar a vida em segurança
“A minha vontade, meu coração, era de ficar para fazer trabalhos humanitários e ajudar também. Mas não me sinto bem. Eu não tenho para onde ir. É uma situação delicada”, disse pouco antes de deixar o hotel em que estava hospedada rumo ao aeroporto de Ancara.
Era madrugada de segunda-feira (6) quando Aminah foi acordada pela gata de estimação. Bruxa passou a noite agitada, mexia nas cortinas do quarto e apresentava um comportamento diferente do usual. Como não sabia muito o que fazer, decidiu voltar a dormir. Cochilava e acordava. Ficou assim por um tempo, até que Bruxa pulou em seu colo e no de seu marido. Estava agitada e não parava de miar.
“Eu falei "tá bom, eu vou acordar" e fui olhar meu relógio. Eu falei: "tá na hora da oração". Quando eu fui me levantar, já estava o prédio em um tremor horrível. Primeiro ele balançou de um lado para outro. Eu tentei me levantar e não consegui. Depois começou um tremor mesmo de terra e um som muito alto”, lembrou.
Assim como os demais moradores da Turquia e da Síria, Aminah já havia vivenciado terremotos, mas não tão fortes e nem com tremores tão duradouros.
“Eu já tinha passado por um tremor de 5.0, mas esse foi de 7.8. Acordei às quatro da manhã e fui acordando as pessoas. A sensação que eu tive era de que era o fim de tudo. O som da terra revirando é pavoroso, nunca pensei em passar por isso”.
Depois que acordou o marido e os vizinhos do andar debaixo, deixou o prédio e, com o esposo, esperou os tremores cessarem em uma praça – longe de construções que eventualmente pudessem ceder. E decidiu voltar ao edifício.
Aminah e o marido foram as únicas pessoas que, em um primeiro momento, voltaram ao prédio – que já não tinha energia nem água.
Ela, assim como boa parte dos passageiros deste avião, acionou a embaixada e o consulado brasileiros na Turquia.
“Agora estou voltando para o Brasil. Vamos ficar e ver o que nos aguarda. Mas Deus nos livrou disso. Esse horário da oração junto com a minha gata e o livramento de Deus”.
Sentada no avião, a sensação parecia ser a mesma que sentiu na segunda-feira.
“Seis dias que eu não durmo. E os tremores. Eu estou sentindo algo dentro de mim como se eu estivesse no momento do tremor. Estou sentindo tonturas, não sei se por ansiedade, mas é terrível, é muito forte. Uma coisa inexplicável”, disse.
Aminah e o marido receberam medicamentos para hipertensão e analgésicos da embaixada brasileira.
Bruxa, que para ela – assim como o horário de rezar – salvou sua vida, ficou em Ancara.
“Eu abri a porta da casa e a deixei sair. Infelizmente eu tive que deixá-la, isso para mim foi muito ruim”, diz, chorando.
Ela espera agora que Bruxa possa ajudar a salvar mais vidas e trazer conforto a quem precisou ficar.
“Eu cheguei na rua e perguntei ao meu irmão: cadê o pai? Ele me respondeu: "Eu acordei ele. Ele não saiu?". Olhei para lá, para cá, meu pai não está aqui. Deixei meu menino no colo da minha esposa e corremos para o apartamento. Meu irmão entrou, pegou meu pai. Não tem luz, não tem nada. Acendeu o celular para o meu pai poder descer. Quando a gente desceu, o prédio balançou de novo, agora menos do que antes. Tem um lugar atrás [do nosso prédio] onde a gente guarda estepe, madeira, essas coisas, e ele já foi [caiu]. Escuto um barulho bem grande. Depois eu vi que rachou o nosso prédio e que parte dele caiu. A gente estava fora, graças a Deus”, contou Mihdat Giçi.
Giçi, que é turco e casado com uma brasileira, demorou dois dias para se dar conta da gravidade deste terremoto.
“No segundo dia eu entendi que eram muitos. Fui ao cemitério e estava pensando que uma pessoa morreu, duas pessoas. A gente enterrou uma. A gente faz uma rezazinha em cima do morto. Eu falei "Allahu Akbar" [Deus é grande] e comecei a rezar de novo. Quando eu vi já eram sete. Sete pessoas naquele dia! Não tinha ambulância, não tinha carro de funerária”, contou.
Ficar não era uma opção. Amigos e parentes morreram nos últimos dias e as cidades que cercam a sua passam por um severo desabastecimento.
Recentemente, ele e sua mulher descobriram que aguardam um novo filho. Mas não conseguem realizar exames como o equivalente ao pré-natal porque os sistemas dos hospitais dependem de internet. E porque poucos hospitais sobraram. Os que ficaram em pé estão superlotados.
No dia do tremor que os fizeram abandonar o edifício em que viviam, ela chegou a cair da escada de sua casa. Ela e o bebê que está esperando estão bem.
“Muitas pessoas lá morreram, muitas. A gente está saindo de lá, não tem lugar para a gente morar. Não tem!”, conta. Sobre expectativa de ir ao Brasil? Deus ajudar, né? Como a gente vai fazer eu não sei. A gente está precisando de ajuda também. Vamos ver.”
Não só brasileiros que moram na Turquia ou têm parentes turcos embarcaram na aeronave da FAB deixando Ancara para trás.
“A gente ofereceu para todos os latinos – baseado neste espírito de integração e amizade regional – e para todos os países que identificassem casos urgentes que precisariam ser repatriados. E dois colombianos foram recomendados pela embaixada da Colômbia tanto aqui em Ancara quanto lá em Brasília”, conta Fabiana.
Luis Espinosa, que tem cidadania venezuelana e colombiana e dá aulas de inglês em Antakya, é um deles.
“Como estou neste voo de emergência? Foi porque conheci um amigo do Brasil e ele me deu informações sobre esse plano. Antes eu havia pedido ajuda ao consulado colombiano sobre se havia possibilidade de um voo de emergência, mas eles avisaram que não havia recursos e que não havia essa possibilidade naquele momento”, conta.
“Eu liguei imediatamente para a embaixada colombiana para pedir para entrar em contato com a embaixada do Brasil para saber se poderia me incluir no voo de volta ao Brasil porque eu havia decido, não me sentia seguro. Porque não dá para saber o que vai acontecer na Turquia. Minha embaixada falou com o Brasil e puderam me incluir neste voo. Foi uma decisão super-rápida”, lembra Espinosa.
Espinosa contou com uma rede de ajuda de amigos e vizinhos. Ainda desnorteado por vivenciar um terremoto pela primeira vez na vida, foi acolhido pelo dono do prédio em que morava.
“Fiquei dois dias na casa dele com comida, calefação, me tratou super bem e ajudou outras pessoas próximas que viviam no edifício. Ficamos em 12 pessoas na casa durante os primeiros dois dias”.
O apartamento em que viveu nos últimos três meses ficou em pé, mas rachaduras tomaram conta das colunas e do teto.
“É uma situação muito complicada, não há palavras para descrever. O que você pensa no momento é que você se sente bloqueado, se sente muito mal, terrível. E no meu caso: eu não falo turco, não posso me comunicar com as pessoas e não sabia o que fazer”.
A professora que trabalhava com Espinosa dando aulas de inglês foi crucial para que ele deixasse Antakya, uma das cidades mais devastadas pelos terremotos.
“Minha vida mudou completamente porque ela me disse que o melhor era deixar a Antakya e ir para Hatay, porque ali não era seguro. Eu não tinha ainda tomado uma decisão sobre ficar ou continuar. Eu estava muito pensativo sobre meus planos. Mas não teria onde ficar, não teria trabalho, não sei quanto tempo levaria para retomar minhas atividades”, concluiu antes de dizer sim para a embaixada brasileira.
Rami Nashed, que é sírio, sua esposa egípcia e as duas filhas do casal – uma delas brasileira – deixaram a família em segurança na Síria.
“Saímos do nosso apartamento com a roupa do corpo”, diz durante o voo apontando para o pijama que estava vestindo. “Minha mulher falou para voltarmos e pegarmos nossas coisas. Eu disse que não voltaríamos de jeito nenhum.”
A esposa mostra os vídeos que gravou durante o terremoto. A gravação revela lustres do teto girando. Estica o dedo para o celular mostrando as rachaduras nas paredes externas do prédio em que morava.
“Minha mãe vai esperar uns dois meses para passar no nosso apartamento e vender nossas coisas”.
Os quatro vão morar em Joinville, em Santa Catarina. Em um primeiro momento, ficarão na casa de amigos que abriram as portas de seu apartamento.
Adoram o Brasil, dizem que o brasileiro é um povo acolhedor e veem um futuro melhor por aqui: Inshallah [Se Deus quiser!, em português].
(Muitos brasileiros que vivem na Turquia não estão registrados na embaixada brasileira do país. Isso dificulta a localização de quem pode eventualmente pedir a repatriação. O e-mail do setor consular é o [email protected] e o telefone celular de plantão é o +90 533 424 0429. É fácil, rápido e salva vidas).
Este conteúdo foi originalmente publicado em Aeronave da FAB vinda da Turquia com repatriados chega ao Brasil no site CNN Brasil.