Isso não acontece por falta de conhecimento, já que pelo menos desde os anos 1980 a indústria de games faz experimentos com a criação automatizada de conteúdos. No entanto, a popularização e o avanço tecnológico de ferramentas de IA generativa, como ChatGPT e Midjourney, funcionam como um catalisador da insegurança dos trabalhadores do setor. Em especial para aqueles que estão começando a carreira em um ambiente econômico já ruim, com as ondas frequentes de demissão em empresas de tecnologia.
O medo transpareceu até em grandes lançamentos realizados na GDC. Ao revelar seu Ghostwriter, ferramenta que escreve falas curtas de personagens secundários com inteligência artificial, a Ubisoft tomou o cuidado de destacar que o instrumento precisa de participação humana para revisar e selecionar as melhores linhas de diálogo. Segundo a empresa, a ferramenta não está substituindo os roteiristas, mas sim, os aliviando de uma de suas tarefas mais chatas e trabalhosas.
Na conferência, o cientista da equipe de pesquisa e desenvolvimento da Ubisoft e criador do Ghostwriter, Ben Swanson, afirmou que a ferramenta foi desenvolvida em conjunto com a equipe de roteiristas da empresa. Ainda assim, ele admitiu que muitos viram a novidade com desconfiança.
Fora da gigante de games francesa, houve mais críticas que elogios. "Esses textos secundários são o primeiro trabalho remunerado (e creditável) que muitos roteiristas conseguem no início da carreira", afirmou Sam Winkler, roteirista sênior da Gearbox, que trabalhou em títulos como "Borderlands 3" e "Tiny Tina's Wonderlands", no Twitter. "Se você trata uma parte da sua história como chata, adivinha? Ela vai ser", completou.
Alanah Pearce, roteirista que trabalhou em "God of War Ragnarök", também usou a rede social para criticar a novidade da Ubisoft. "Ter que editar diálogos feitos por IA parece mais demorado do que escrever eu mesma. Preferiria que grandes estúdios usassem o orçamento de ferramentas como essa para contratar mais roteiristas", escreveu.
A ferramenta da Ubisoft, no entanto, é apenas o início do que promete ser uma revolução na forma como os videogames são produzidos e jogados.
A startup californiana Inworld, por exemplo, expôs em seu estande na conferência uma ferramenta de inteligência artificial que faz NPCs (personagens não jogáveis) responderem em instantes a perguntas e comentários criados pelo jogador. Ela funciona de modo similar ao ChatGPT, mas seguindo parâmetros para o personagem estabelecidos pelo desenvolvedor. É possível ver a ferramenta em ação em um mod do jogo "Mount & Blade II: Bannerlord" e em vídeo do game "Origins", em desenvolvimento pela própria Inworld.
O programa funciona bem na parte técnica, mas a qualidade dos diálogos (genéricos e repetitivos) e a voz sintetizada da inteligência artificial deixam a desejar e mostram que a tecnologia ainda está longe do alto padrão demandado dos games de primeira linha, os chamados "AAA". Ainda assim, é um início.
Já a plataforma chinesa de criação de jogos Yahaha esteve presente na GDC mostrando como a IA pode facilitar o desenvolvimento de games, inclusive por amadores. Com o sistema levado pela empresa para a conferência era possível criar jogos em 3D sem saber praticamente nada sobre programação ou design. Bastava ao usuário descrever em forma de texto o que ele queria que a IA se encarregava de buscar e posicionar objetos, iluminação, animações etc.
Esse é um dos usos mais promissores para a inteligência artificial nos games, tanto que outras plataformas para criação de jogos, como Roblox e Unity, vêm desenvolvendo e experimentando ferramentas semelhantes.
Segundo Andrew Maximov, ex-diretor técnico de arte da Naughty Dog e fundador da Promethean AI, empresa que cria ferramentas de inteligência artificial, esse uso da tecnologia assusta trabalhadores que gastaram anos de vida e rios de dinheiro estudando e se especializando em programas para desenvolver games.
"Observando a complexidade da nossa indústria e a forma como os cursos e a indústria de softwares fazem você pensar que as ferramentas são tudo o que você precisa para a sua profissão, é muito fácil se perder na ideia de que as ferramentas são quem você é", afirmou Maximov. "Mas isso não é verdade, assim como compor uma música não é a mesma coisa que saber tocar um instrumento."
Em sua palestra sobre como a IA pode transformar a indústria de games, Maximov destacou mais a capacidade analítica dessas ferramentas -de entender, catalogar e disponibilizar recursos de um banco de dados, por exemplo- do que suas capacidades puramente generativas, sobre as quais ainda pairam questões éticas e legais.
A legislação sobre registro de propriedade intelectual gerada por inteligência artificial não está consolidada. Maximov alertou também para os riscos de ferramentas que usam como matéria-prima imagens capturadas indiscriminadamente na internet plagiarem artistas e criarem figuras baseadas em material sob proteção de copyright.
"Se você quer ficar rico rapidamente, pegue um jogo que cria conteúdo gerado por usuários com uma dessas ferramentas, crie milhares de imagens, faça uma busca reversa até achar uma imagem que se pareça a alguma coisa que alguém já fez, procure o artista e convença-o a processar a empresa que fez o jogo", afirmou Maximov. Ele é uma das testemunhas de acusação na ação movida por artistas contra as plataformas DreamUp, Midjourney e Stable Diffusion, que criam imagens por IA a partir de comandos de texto.
"Qualquer empresa de games que tenha algum tipo de controle sobre sua propriedade intelectual vai desencorajar o uso desse tipo de conteúdo até que todas as questões legais estejam resolvidas."
Seja qual for o resultado das ações na Justiça e o avanço da tecnologia, não há dúvida de que o futuro do desenvolvimento de jogos estará ligado de alguma forma a ferramentas de inteligência artificial. Com isso, o maior risco não é perder o emprego para uma IA, mas sim, para alguém que saiba como trabalhar com ela.