Ouça o relato de uma menina violentada no Sol Nascente:
Segundo a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), foram registrados 72 casos de estupros de crianças e adolescentes entre 14 de agosto de 2019 – data da criação da região administrativa – e 29 de março de 2023.
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O número de violações na favela, que fica a 35 quilômetros do Praça dos Três Poderes, é crescente. Ao longo de 2020, foram computados 17 casos de agressões sexuais. No ano seguinte, o número avançou para 18. Em 2022, chegou a 27, registrando aumento de 58,8%.
O Metrópoles entrevistou, com autorização da mãe, uma menina vítima de estupro (foto em destaque). Com menos de 15 anos anos, a adolescente era constantemente violada pelo padrasto. Por segurança e respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a identidade dela será preservada.
Nos primeiros anos da infância, o padrasto de *Sarah a tratava bem. Demonstrava carinho, brincava, a levava para a escola e ajudava nos estudos.
Após cinco anos de convivência, a história começou a mudar. No primeiro abuso, ambos estavam sozinhos em casa. “Ele chegou e pediu para sentar no colo dele. Fez coisas que eu não gostava. Me senti mal, e só que não conversei com ninguém porque pensava que não iam acreditar em mim”, narrou.
Morte aos poucos
“Depois disso, ele começou a cometer o ato comigo consecutivamente. Uma vez por mês, às vezes uma vez na semana”, revelou. Os momentos de terror sempre ocorriam quando não havia outras pessoas da família em casa.
A menina buscava refúgio nos estudos, escutando música no quarto ou assistindo televisão. Mesmo sem forças para denunciar, deixava pistas na casa. Mas os sinais passavam despercebidos pelos olhos da mãe.
A rotina de horror massacrou a alma da menina. “Eu senti como se eu estivesse morrendo aos poucos, sabe?”, relembra. Sarah preferia ficar mais tempo na escola do que em casa. O lar passou a ser sinônimo de dor.
“Ela não vai acreditar em você”
“Continuei tratando em ele bem, porque pensei: "Ele vai parar. Algum dia ele vai parar”, desabafou. Mas a rotina de abusos prosseguiu. Em alguns momentos, a adolescente ameaçou denunciar o agressor. “Ele agarrava o meu braço e falava: "Sua mãe não vai acreditar em você. Ela confia em mim”. E o medo amordaçava a criança.
Após anos de abusos, Sarah teve finalmente forças para desabafar no colégio, já em 2023. A denúncia foi levada para a direção da escola e foi encaminhada ao Conselho Tutelar.
Incrédula, a mãe da menina desabou em lágrimas quando soube do calvário enfrentado pela filha. Apresentou denúncia na PCDF e pediu o divórcio imediatamente. Ela confrontou o ex-companheiro, que negou os crimes e acusou a menina de mentir. Mas os exames, solicitados pelo Conselho Tutelar, confirmaram os abusos.
Mãe e filha têm medida protetiva, mas vivem com medo. Segundo a mulher, o acusado chegou a encontrar com a menina e tentou fazer com ela mudasse a depoimento. Apesar de todos os indícios, o abusador segue solto. “Por que não colocam pelo menos uma tornozeleira? As vítimas têm que se esconder do mundo. Ele poderia ter me matado. Ele está solto”, criticou a jovem.
Com o passar do tempo, o coração da menina começou a ficar leve novamente. Filha e mãe mudaram de endereço. De mãos dadas, começaram a escrever novas vidas.
“Quero superar tudo isso. Quero estudar bastante”, afirmou a vítima. “Penso em escrever um livro. Para ajudar as pessoas que estejam passando por isso a falar e não prender isso para elas, porque é ruim demais”, completou.
Justiça sem silêncio
O caso de Sarah ainda tramita na Justiça. “O que ele fez comigo não se faz com ninguém. É desumano”, cravou. A menina não sente raiva do agora ex-padrasto, mas quer que o homem pague pelos crimes.
“Esconder isso faz mal a si mesma. Quem está te fazendo mal, ele ou ela, está se beneficiando. Porque vejo que esse tipo de agressão não vem só da parte dos homens. Mulheres também fazem e isso é horrível. Não se esconda do mundo ou das pessoas ao seu lado. Porque tem muita gente que te ama”, aconselhou a menina.
A menina pede que famílias acolham as crianças e adolescentes vítimas de estupro. “É para proteger mais. Não é para deixar presa dentro de casa. Porque, como vimos, a agressão pode acontecer dentro de casa. É deixar de uma forma segura”, concluiu.
“O Conselho Tutelar não tem muito recursos”, comentou. A menina violentada não conseguiu acesso ao tratamento psicológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Recebeu assistência particular com ajuda de amigos da família.
“Quero alertar as mães: prestem mais atenção nas filhas. Não confiem demais nas pessoas. Não pensem apenas no trabalho. Infelizmente, a violência está tão comum”, alertou a mãe da jovem.
Em 2019, foram registrados no total 6 crimes contra crianças e adolescentes. Os pequenos também são vítimas de outros tipos de violências, como lesão corporal dolosa e maus-tratos. No decorrer de 2020, o número de ocorrências envolvendo menores aumentou para 76. Ao longo de 2021, chegou a 109. Em 2022, ficou em 101. No cálculo parcial de 2023, já são 25 casos.
Veja os números:
A situação pode ser ainda mais grave na região administrativa, pois muitos crimes correm risco de não terem sido sequer denunciados. Apesar da situação alarmante, a comunidade tem apenas um Conselho Tutelar.
Segundo os conselheiros da unidade, existem, aproximadamente, 700 denúncias e pedidos de socorro na fila para o primeiro atendimento, que nem começaram a ser analisados.
“Todos os dias recebemos denúncias de crianças abandonadas, sozinhas em casa, uso de álcool, drogas sintéticas, maconha. Pais usuários deixam as crianças abandonadas”, denunciou a conselheira Selma Aparecida da Costa.
GDF
A Secretaria de Justiça e Cidadania afirmou que, nos próximos dias, será publicada uma portaria em caráter especial para que as unidades III e IV dos Conselhos Tutelares de Ceilândia auxiliem nas demandas do Sol Nascente. Antes da criação da unidade local, questões da região eram atendidas por ambas.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, o estupro de vulnerável ocorre, em maior parte, no interior de residências, em ambientes familiares. Por isso, a denúncia é o principal mecanismo para que o governo possa elaborar estratégias de atuação preventiva e, ainda, para identificar e prender autores.
A nova sede da 19ª Delegacia de Polícia, no Sol Nascente, está nos planos da PCDF. Tão logo se conclua a fase de definição do terreno, a Divisão de Arquitetura e Engenharia (DAE) dará continuidade à elaboração do projeto. Até lá, a corporação orienta que o registro de ocorrência pode ser feito em quaisquer delegacias e também por meio da Delegacia Eletrônica, pelo link. Denúncias também podem ser feitas por meio do 197.
A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), localizada no Departamento de Polícia Especializada (DPE), também é um canal para as famílias e vítimas fazerem denúncia e buscar socorro.
A Polícia Militar do DF (PMDF) também atua no Sol Nascente, na prevenção de crimes. O 10º Batalhão, responsável pela região, passou a ter novos militares do último concurso. O programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid) contribui para interromper o ciclo da violência doméstica.
Creas
A Secretaria de Desenvolvimento Social informou que atua de maneira conjunta e integrada às demais políticas para prevenção, proteção e acolhimento. O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) é a porta de entrada para questões de violência, exploração e violação de direitos de crianças e adolescentes.
No que diz respeito à prevenção, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos atua nas regiões de vulnerabilidade com atividades diárias para crianças e adolescentes, com o objetivo de identificar possíveis casos por meio da execução de ações protetivas junto às famílias.
Segundo a pasta, unidades especializadas abrigam menores com direitos violados. Além disso, a pasta oferece o serviço de estadia temporária. Vítimas separados das famílias de origem, por ordem judicial, em lares estáveis e capazes de oferecer toda a proteção, carinho, amor e cuidado. O número de vagas da iniciativa saltou de 20 para 65.
* Nome fictício em respeito ao ECA
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