O relatório enviado aos promotores do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) reúne documentos, notas fiscais e informações que endossam a denúncia. Foram identificadas 179 empresas de fachada e 579 beneficiários "laranjas".
Ao todo, houve 34.973 solicitações de reembolsos fraudulentos. Desse total, ao menos R$ 17,7 milhões chegaram a ser pagos por quatro operadoras de saúde. O restante foi negado mediante a comprovação das fraudes.
Há vários processos individuais já tramitando na Justiça, mas agora, com os indícios de que há uma organização criminosa articulando essas fraudes, foi solicitada a atuação do grupo especializado.
A apuração feita por quatro operadoras associadas à Fenasaúde (Amil, Bradesco Saúde, Porto Saúde e SulAmérica) contou com ajuda de ferramentas de inteligência artificial para o cruzamento de informações e de profissionais que foram a campo para investigá-las ao longo de quatro meses.
Segundo Vera Valente, diretora-executiva da Fenasaúde, a suspeita de que havia um grupo criminoso agindo no setor surgiu a partir de um aumento de até 30% nos pedidos de reembolsos de despesas médicas verificado pelos planos no período pós-pandemia de Covid.
"Mapeamos os casos e aí começamos a ver coincidências de empresas, de beneficiários, de prestadores. Ao puxar esse fio e cruzar os dados, chegamos a esse cenário que envolve valores expressivos e que impactam a todos os beneficiários", diz ela.
No esquema, os criminosos criavam empresas jurídicas de fachada, com sócios "laranjas", pessoas que emprestam seus documentos para figurar no contrato social, mas que nunca usaram um plano de saúde.
Essas empresas não existem fisicamente, muitas têm a mesma razão social, com o mesmo endereço falso e a mesma atividade econômica. Em alguns casos, até os emails que se repetem.
Uma vez criadas, corretores de seguros (ainda não se sabe se reais ou falsos) faziam a intermediação com as operadoras de saúde. Os fraudadores também abriram clínicas de consultas e laboratórios de análises clínicas e de imagem. Tudo de fachada, mas com notas fiscais verdadeiras.
"Tem uma existência no papel, perante a Receita Federal. Mas aí você vai procurar, e a clínica não existe", relata o advogado criminalista Rodrigo Fragoso, responsável pelo caso.
Os recibos de serviços de saúde que nunca foram prestados têm carimbo de médicos, mas ainda não se sabe se há envolvimento real deles ou se a quadrilha usava desses dados sem que o profissional soubesse.
"É uma verdadeira organização criminosa, com uma estrutura empresarial, divisão de tarefas, pessoas remuneradas, com valor fixo, muito diferente do padrão de fraudes ocasionais que a gente está acostumado", diz Fragoso.
Ele conta que foi possível observar que na organização há pessoas responsáveis por abrir as empresas, outras que fazem o papel de corretores de seguros e outras que cuidam da abertura de contas bancárias falsas para onde são destinados os reembolsos fraudulentos.
Segundo o advogado, somente uma investigação do Ministério Público, com ajuda policial, poderá requisitar quebra de sigilo bancário e outras medidas para saber, por exemplo, quem é o destinatário final desses recursos dos reembolsos que foram parar nas contas falsas.
"As notas fiscais se repetem. A gente viu, por exemplo, uma empresa de fachada com 20 funcionários que, no mesmo dia, 15 deles foram atendidos em uma mesma clínica e fizeram solicitação de reembolso."
No documento apresentado à Promotoria, a Fenasaúde pede a investigação dos crimes de pertencimento à organização criminosa, falsidade ideológica e estelionato.
OUTRAS FRAUDES
Para Fragoso, os impactos dessas fraudes podem ser muito maiores aos levantados na apuração preliminar da Fenasaúde. "Esse esquema, especificamente, é só a ponta de um iceberg muito maior."
De acordo com Vera Valente, o caso serve de alerta para sociedade. "O valor de uma fraude, de um atendimento que não aconteceu, que é fake, vem para a conta da despesa assistencial. Todo mundo está pagando. Impacta na sustentabilidade do sistema de saúde, na previsibilidade de gastos por parte dos planos."
Ela afirma que existem outros comportamentos fraudulentos relacionados ao reembolso de despesas médicas amplamente praticados, como o fracionamento de recibos. Por exemplo: uma consulta médica custa R$ 1.000, e a pessoa tem direito a R$ 300 de reembolso pelo plano. Ela paga os R$ 1.000, e recebe do médico dois ou mais recibos, com datas diferentes, para conseguir um reembolso igual ou próximo ao valor pago.
Segundo Valente, também há casos de recibos concedidos sem nenhum atendimento prestado e ainda o uso indevido de exames laboratoriais. "Você vai numa clínica de emagrecimento, o médico te dá uma lista gigante de exames, muitas vezes a coleta é feita na própria clínica. Aí eles dobram o pedido de exames, e o plano paga por muita coisa que não foi feita."
Há casos em que profissionais da saúde propõem usar o valor do reembolso de serviços não prestados para bancar outros procedimentos que não estão no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). "Isso está numa dimensão absurda, com tentáculo de todos os jeitos. Tem do contraventor até o criminoso. Do batedor de carteira ao crime organizado", diz Valente.
Neste mês, a Fenasaúde anunciou a criação de uma gerência de prevenção e combate às fraudes. Segundo dados de um estudo do IES (Instituto Ética Saúde) de 2020, 2,3% de tudo que é investido na saúde são perdidos com fraudes.
Considerando que o orçamento destinado ao setor (público e privado) nos últimos anos correspondeu, em média, a 9% do PIB, equivalente a R$ 630 bilhões, o país perde pelo menos R$ 14,5 bilhões todos os anos com fraudes na saúde. É quase 10% do orçamento previsto para área da saúde em 2023 (R$ 146, 4 bilhões).
Com as fraudes, as operadoras acenderam o alerta vermelho e estabeleceram critérios mais rígidos para o reembolso de despesas médicas. Em canais como o Reclame Aqui, a demora para conceder o reembolso tem sido umas principais queixas de usuários contra os planos de saúde.
"Se começa a ter muita prática errada, a operadora tem que fazer uma checagem muito mais criteriosa do que está pagando. Vira uma bola de neve e acaba prejudicando quem faz direito, de forma de honesta."