À frente da equipe na segunda edição consecutiva -um feito que só Zagallo e Telê Santana tinham alcançado até então-, o treinador acredita ter conseguido preparar melhor a equipe dentro e fora de campo. "O tempo me permitiu até errar", brinca Tite nos bastidores.
São vários os fatores que dão ao técnico a confiança para pensar assim. Alguns deles são até naturais, como a continuidade e maior tempo no comando da seleção, e outros foram planejados ao longo do ciclo de quatro anos desde a Copa da Rússia, quando o Brasil foi eliminado pela Bélgica nas quartas de final.
O desempenho da seleção nas Eliminatórias, quando conseguiu a melhor campanha da história do formato mesmo com um jogo a menos, ajuda a demonstrar a evolução da equipe entre os ciclos notada por Tite. Mas há muito para além dos resultados, como o uso de mais jogadores, mais variações táticas, mais experiências boas e ruins, mais atenção a detalhes logísticos, mais sintonia entre comissão técnica e elenco e até o desenvolvimento pessoal. É que Tite se vê um técnico melhor em 2022 do que era em 2018.
A reportagem conta como a seleção se preparou para a Copa do Mundo que está por vir e por que chega ao Qatar cercada por um otimismo que há muito não se via no país pentacampeão mundial.
QUEM FICOU PELO CAMINHO
A escalação da seleção eliminada pela Bélgica em 2018 foi a seguinte: Alisson; Fagner, Thiago Silva, Miranda e Marcelo; Fernandinho, Paulinho (Renato Augusto) e Philippe Coutinho; Willian (Firmino), Neymar e Gabriel Jesus (Douglas Costa).
Deles, só Alisson, Thiago Silva, Coutinho, Firmino, Neymar e Gabriel Jesus ainda fazem parte da equipe ou têm convocações recentes. De 14, oito ficaram pelo caminho.
Os quatro anos de ciclo proporcionaram variedade de convocações. Um levantamento do UOL mostra que Tite listou 88 jogadores diferentes entre 2018 e 2022, sendo 50 deles -ou seja, quase 60 - estreantes, gente que nunca tinha vestido a Amarelinha.
Alguns novatos emergiram e afundaram ao longo dos quatro anos, como o atacante Everton Cebolinha. De esperança de jogadas de habilidade com o nome cantado pela torcida na Copa América de 2019 a não convocado desde junho de 2021. David Neres é outro que teve sequência como titular na seleção, mas acabou sumindo das convocações.
Ainda teve casos como do volante Arthur, titular absoluto depois do Mundial e peça importante no título da Copa América, mas que rodou de clube em clube e deixou a preferência de Tite, e Gabigol, com boa sequência na Copa América 2021, mas sem se firmar na seleção.
O técnico precisou recriar o time mais de uma vez ao longo do ciclo para o Qatar. As formações atuais são recentes, se consolidaram há pouco mais de um ano. Uma delas tem Raphinha e Vini Jr como titulares, dois jovens que não têm nem 20 jogos pela seleção. Junto com Antony e Rodrygo, a dupla forma o grupo apelidado de "perninhas rápidas" para quem Tite abriu caminho na seleção na reta final da preparação. A porta continua aberta.
CAMPANHA É HISTÓRICA, MAS EXISTE UMA LACUNA
Se em 2016 Tite assumiu a seleção em meio às Eliminatórias para evitar o vexame de ficar fora da Copa do Mundo, desta vez a seleção nunca passou por dificuldades no torneio classificatório. Pelo contrário: o time de Tite estabeleceu um novo recorde de pontuação.
Invicta, a seleção brasileira somou 45 pontos em 17 jogos. Mesmo com uma partida a menos por causa da confusão que acabou cancelando o duelo contra a Argentina, o Brasil de Tite bateu o recorde que era dos 'hermanos' de Marcelo Bielsa nas Eliminatórias para a Copa de 2002 -em 18 jogos, a equipe argentina tinha marcado 43 pontos.
Desde que assumiu a seleção, Tite soma 75 jogos, com 56 vitórias, 14 empates e cinco derrotas. Foram 161 gols marcados e 26 sofridos. Em jogos oficiais, Tite só saiu derrotado contra a Bélgica, na Copa de 2018, e a Argentina, na final da Copa América em 2021.
Apesar dos números positivos, a seleção chega ao Qatar com uma lacuna em sua preparação: de 50 jogos, só um foi contra adversário europeu. Além da República Tcheca em março de 2019, mais nada. Isso se deve à criação da Liga das Nações que ocupou todo o calendário das seleções europeias. Publicamente, a seleção tenta ponderar essa brecha dizendo que França, Alemanha e Inglaterra também não puderam enfrentar Brasil e Argentina para testar seu nível, mas Tite sabe que faz falta.
"Eu preferia ter mais jogos, um intercâmbio maior. Talvez isso nos proporcionasse uma maturidade e desempenho maiores".
É POSSÍVEL APRENDER COM OS PRÓPRIOS ERROS
A impressão geral depois da Copa do Mundo de 2018 foi que Tite viveu e morreu com suas convicções. Ao mesmo tempo em que resgatou a seleção que estava em sexto nas Eliminatórias com Dunga, essa realidade atrapalhou a trajetória no Mundial.
O principal problema foi a gestão dos problemas físicos do elenco. O caso do volante Fred é emblemático. Ele se machucou numa dividida com Casemiro antes do início da Copa. Tite optou por mantê-lo no elenco mesmo autorizado a fazer a troca e acabou tendo uma opção a menos durante a competição, porque Fred não jogou.
Além de Fred, Douglas Costa chegou à Copa lesionado. Ele se recuperou ao longo do torneio, se machucou de novo e só ficou disponível em dois dos cinco jogos. Por fim, Renato Augusto sentiu um incômodo no joelho por causa da sobrecarga de treinamentos na Granja Comary e teve participação limitada.
Além disso, Tite insistiu em jogadores que não renderam o esperado ao longo da campanha. As trocas foram motivadas somente por suspensões ou lesões. Fora isso, o time foi o mesmo do começo ao fim apesar do desempenho contestável de Paulinho, Willian e Gabriel Jesus.
E O TITE MUDOU?
Ele diz que sim e os números do ciclo para a Copa têm concordado. Em proporção, a quantidade de jogadores testados é maior agora do que em 2018.
Dois exemplos simples: entre 2016 e o fim da Copa de 2018, Tite escalou o goleiro Alisson em 22 de suas 26 partidas do pequeno ciclo. Nenhum outro goleiro jogou mais de duas vezes. Já o volante Casemiro foi titular em 17 jogos, enquanto Fernandinho não passou de dez. Eram posições com titulares consolidados e reservas pouco testados no esquema.
Para 2022, o cenário mudou. Alisson ainda é o preferido no gol, mas sua participação em jogos caiu de 85% para 53%, o que permitiu que Ederson (16 jogos em 50) e até o terceiro goleiro Weverton (6 jogos) fossem testados.
No meio-campo, Casemiro também mantém a titularidade com 37 jogos disputados em 50. Mas o atual reserva Fabinho, entre saídas do banco e partidas como titular, chegou a 23 no ciclo. Isso tudo significa que há mais jogadores testados e prontos para jogar na seleção que vai para o Qatar. Uma chance a mais de evitar o risco de 2018, quando Fernandinho substituindo o suspenso Casemiro foi um dos piores em campo contra a Bélgica.
Já do ponto de vista físico, a respeito da gestão de lesões, Tite tem deixado recados públicos nos últimos tempos. "Ou o atleta está performando no mais alto nível ou está fora", disse em setembro.
A Copa será no meio da temporada europeia, com os jogadores no ápice da performance física, mas desgastados pela sequência de jogos nos clubes. O preparador Fábio Mahseredjian já definiu a programação, que prevê treinos leves nos primeiros três dias e depois atividade normal. São apenas dez dias entre a apresentação do elenco e a estreia na Copa, é preciso que todos estejam bem, então o profissional já avisou: "Não quero, mas pode ter atleta cortado no dia 13 de novembro por esse motivo."
Não gosto de comparar um ciclo [de Copa] ao outro, porque são situações diferentes, todas as circunstâncias são diferentes. Neste, há um processo de início, meio e fim e isso traz benefícios para o futebol brasileiro.
A possibilidade maior de sucesso respeita processos, digo isso para todos os dirigentes do futebol brasileiro e também para o técnico que vier depois de mim: respeitem os processos, deem tempo para o trabalho ter início, meio e fim. Vai chegar e ser campeão mundial? Não posso assegurar. Mas que a chance maior de sucesso é respeitando processos, sim.
"NEYMAR MAIS "ON" DO QUE NUNCA
Antes mesmo do início da pré-temporada 2022/23, Neymar já dava indícios do foco com que trataria o período que antecede a Copa do Qatar. O craque brasileiro iniciou trabalhos antes dos demais e relatos dão conta de que era o primeiro a chegar e o último a sair.
Em uma live na Twitch, deixou evidente seu otimismo para a temporada ao dizer que estava sentindo que tudo que tentasse iria entrar. Em diversas postagens voltou a reforçar o desejo de ser hexa e chegou a brincar com Mbappé em entrevista para canais do clube ao dizer que em novembro a França voltaria para casa e em dezembro o Brasil levantaria a taça.
E a confiança se refletiu no desempenho em campo, o melhor início de temporada de Neymar em solo europeu. O esquema adotado pelo novo técnico Christophe Galtier também beneficiou o camisa 10, dando mais liberdade para combinar com Lionel Messi, seu amigo fora de campo.
Assim como na seleção, agora Neymar também tem no PSG mais "liberdade criativa" -como Tite gosta de chamar- e menos responsabilidades defensivas. O resultado é uma participação ofensiva sem igual.
Aos 30 anos, Neymar tem tudo para chegar àquela que pode ser sua última Copa do Mundo -segundo o próprio jogador- em seu melhor momento dentro de campo e com uma representatividade muito maior dentro do vestiário da seleção brasileira.
Hoje, Neymar não é mais o "menino Ney", mas assumiu o posto de 'presidente'. O camisa 10 não é só a referência técnica em campo, mas também a referência para toda uma nova geração que começa a trilhar seu caminho com a Amarelinha.
É ele quem recebe e comanda as brincadeiras com novatos como Vini Jr, Rodrygo, Raphinha, Antony e outros. E todos são só elogios para Neymar. Em campo, ele também faz questão de passar confiança aos mais jovens.
O próprio Tite já disse que Neymar é o primeiro a defender os mais jovens em campo. Em certo episódio, Vinicius foi cobrado por um companheiro e o camisa 10 interferiu para defender o jogador do Real Madrid (ESP). "Dá dura em mim, mas não dá neles. Incentiva a molecada, tem que ir pra cima. Vini, vai pra cima, se você errar eu te ajudo a recompor".
AS VARIAÇÕES E A CONFIANÇA DE TITE
A derrota para a Bélgica na Copa do Mundo de 2018 quase fez Tite decidir deixar a seleção. O que o fez continuar foi a oportunidade de fazer um ciclo completo de preparação para a próxima Copa. Já com a experiência da Rússia, o treinador sabia exatamente o que queria fazer durante o período para deixar sua equipe o mais preparada possível para o torneio.
Então, Tite usou os últimos quatro anos para testar muito mais do que jogadores: o comandante queria implementar variações táticas, metodologias de jogo, formas de atacar e defender. Hoje, o comandante tem esquemas treinados e assimilados pela base de sua seleção.
Durante o percurso, porém, Tite recebeu um presente do destino que também lhe deu o trabalho de mudar a equipe taticamente. Nos últimos dois anos, o treinador viu explodir jogadores como Vinicius Jr, Raphinha, Rodrygo e Antony. Os "perninhas rápidas", como apelidou, forçaram seu caminho para a seleção com talento e alto desempenho nas principais ligas da Europa.
Assim, Tite montou o Brasil com um esquema tático que tem dois pontas abertos de cada lado, geralmente Raphinha e Vini Jr. São jogadores livres para driblar, correr e entrar na área, mas que também precisam recompor defensivamente para permitir que o agora meia Neymar fique mais livre.
Com esse desenho, os laterais de Tite armam jogadas por dentro e só Casemiro tem lugar cativo no esquema tático, pois o popular segundo volante é deixado de lado para a entrada de Paquetá como meia pela esquerda, além de um centroavante. Vira um 3-2-5.
Outro esquema testado para jogos contra seleções mais fortes tira um dos pontas da formação, geralmente Vini Jr. Aí Paquetá vira o ponta pela esquerda, ajudando na recomposição, e um volante entra. Fred é o preferido, mas Bruno Guimarães tem conquistado espaço. Aí os laterais são laterais mesmo, numa faixa mais atrasada. É assim que a seleção chega no Qatar.
RELAÇÃO DIFERENTE COM AS FAMÍLIAS
O planejamento da comissão técnica da seleção prevê uma relação diferente com os familiares dos jogadores durante a Copa do Mundo, na comparação com o que ocorreu na Rússia. Os parentes e agregados terão menos espaço no cotidiano da delegação.
Quatro anos atrás, a seleção tinha Sochi como base. A CBF se responsabilizou por organizar a hospedagem de praticamente todos os parentes e amigos (grupos de até dez pessoas) em um mesmo hotel, propiciando ainda um voo fretado da cidade para os outros locais de jogos da seleção.
O que ficou de lição para o Qatar é adotar um distanciamento maior. Na visão da comissão técnica, os jogadores tiveram problemas em manter a cabeça exclusivamente na competição. Quem esteve na Rússia entendeu que problemas familiares invadiram a rotina do grupo, o que atrapalha na concentração. Alguns familiares, por exemplo, precisaram trocar de hotel durante a Copa por falta de quartos.
Em Doha, a CBF não ficará responsável pela logística e hospedagem das famílias dos jogadores. Além disso, o calendário não permite tantos momentos de folga/lazer no período do Mundial. A Copa acontecerá ao longo de 29 dias.
"A gente conversou com a comissão técnica sobre a experiência que tiveram em Sochi. Eu fui falar com o Edu também. Ele me confessou que poderia ter sido melhor. É complicado tomar conta de duas frentes. Primeiro, foco na competição. Quando der, a gente vai agregar os familiares", disse Juninho Paulista, coordenador da seleção.