Ao todo, foram 1.863 ocorrências, conforme informações das redes de saúde pública e privada reunidas pela Secretaria Municipal da Saúde. Essa quantidade supera em 82% a verificada no primeiro semestre de 2019, antes da pandemia de Covid-19, quando foram constatados 1.025 casos.
O aumento também é confirmado pelos dados anuais. Em 2019 inteiro, os episódios somaram 2.609. E, em 2022, passaram para 3.823, 46,5% a mais.
O problema não se restringe à capital paulista. Em Curitiba, o Hospital Pequeno Príncipe, maior hospital exclusivamente pediátrico do país, registrou 57 casos de tentativa de suicídio em 2022. Em 2021, foram 56; em 2020, 19; e em 2019, 16.
"As crianças estão vindo cada vez mais cedo. No ano passado, tivemos quatro crianças de 11 anos e, em 2021, atendemos um menino de apenas sete anos", diz Rosane Brasil, coordenadora do serviço social do hospital.
Mas o que está levando crianças e adolescentes a tentar o suicídio? A resposta, afirmam especialistas ouvidas pela Folha, envolve questões psicológicas, familiares, sociais e econômicas e demanda cuidados em falta no país.
"O suicídio infantojuvenil é um problema de saúde pública multifatorial e de alta complexidade. Não é um problema só de um sujeito ou de determinada família", afirma Daniela Prestes, psicóloga no Pequeno Príncipe.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de suicídios de jovens cresceu no Brasil nos últimos anos. De 2016 para 2021, a taxa de mortalidade por cem mil pessoas relacionada a essa causa aumentou 45% na faixa de 10 a 14 anos e 49,3% na de 15 a 19 anos, contra 17,8% na população em geral.
Também não se trata de um desafio exclusivamente brasileiro. De acor do com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o suicídio é a quarta causa de morte mais recorrente entre pessoas de 15 a 29 anos.
PANDEMIA AMPLIOU O PROBLEMA
A depressão e a ansiedade são observadas em parte das crianças atendidas com sinais de autolesão ou por tentativa de suicídio, e a pandemia de Covid-19 provocou um aumento nesses quadros. Estudo publicado na revista Jama Pediatrics mostra que os sintomas de depressão cresceram 26% nos jovens de até 19 anos e que a ansiedade teve um aumento próximo de 10%.
"A pré-adolescência e a adolescência são fases de muitas mudanças e perdas", diz Prestes. "Esse sujeito perde o corpo da infância, perde o status de criança e perde os pais da infância, no sentido daquele imaginário de que os pais podem tudo, para se deparar com os pais da realidade."
E são etapas marcadas por novas exigências da família e do meio social. "A criança não dá conta de ter um desempenho à altura da expectativa da família e da sua própria e isso vai aumentando o grau de ansiedade. Pode alimentar ainda um quadro depressivo pela frustração", explica a professora Valéria Campinas Braunstein, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
A pandemia também dificultou o cotidiano daqueles que tinham na escola um escape para os problemas domésticos e prejudicou o desenvolvimento pela redução da interação social. Eles voltaram para a sala de aula crescidos fisicamente, mas não emocional e socialmente.
Além disso, o isolamento ampliou o tempo de tela, expondo os pequenos à felicidade tóxica e ao maior risco de violência. Quanto mais tempo a criança passa conectada, maior a chance de exposição ao cyberbullying e a conteúdos impróprios, lembra a psicóloga Karen Scavacini, fundadora do Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio e criadora do Mapa da Saúde Mental, que lista serviços públicos de saúde mental.
AMOR, DIÁLOGO E LIMITES
Outro aspecto indicado pelas especialistas é a dificuldade de crianças e adolescentes de enfrentar contrariedades. "É muito importante que na família haja amor, diálogo e autoridade para apontar que todos nós estamos submetidos a limites", afirma Prestes. "Os jovens estão sem condições internas de lidar com as dificuldades e não encontram suporte no meio familiar e social."
Do mesmo modo, conflitos familiares por questões religiosas, de identidade de gênero e visões políticas têm sido observados como causa de distanciamento e sofrimento nos pacientes mais novos.
"'Sou uma menina ou um menino? Gosto de meninas ou de meninos?'. Essas questões vêm muito fortes nos casos de tentativa de suicídio porque eles não têm com quem conversar. Tem muita gente para julgar, mas ninguém para ajudar", diz Rosane Brasil.
Adicionalmente, há a violência física, psicológica ou sexual. Levantamento do Ministério da Saúde aponta que, de 2015 a 2021, foram notificados 202.948 casos de violência sexual com vítimas de até 19 anos. Apenas em 2021, foram 14.269 casos envolvendo crianças e 20.927 relacionados a adolescentes, um triste recorde.
"Nem todas as crianças passam por tratamento psicológico assim que a violência acontece e vão carregando esse sofrimento com elas. Muitas vezes, elas nem entendem que aquilo foi uma violência e, quando chegam à adolescência, começam a entender", acrescenta Brasil.
O racismo e aspectos como desemprego dos pais e falta de moradia também são fatores importantes. "Com crianças, especificamente, a questão social tem um peso enorme", afirma Scavacini.
OS 3 'IS' DO SOFRIMENTO
A combinação dos fatores leva os jovens a uma sensação de desamparo e desespero. "Eles pensam: 'Para quê eu vou viver se a dor que estou sentindo não vai passar?'", conta Scavacini. "Eles sentem o que chamamos de três 'is': uma dor interminável, inescapável e intolerável'."
As especialistas ressaltam que frequentemente os pacientes não querem acabar com a própria vida, mas sim com o sofrimento. "As autolesões e as tentativas de suicídio são sintomas de um sofrimento psíquico insuportável, são manifestações endereçadas ao outro procurando amor, procurando resolver essas questões", salienta Peres.
Na autolesão, a criança busca alívio momentâneo por meio de cortes na pele. Os machucados, porém, suscitam culpa e vergonha, aumentando a dor e levando a novas lesões. Nas tentativas de suicídio, por outro lado, o intuito é acabar com a dor.
Assim, há uma diferença na intencionalidade, mas ambos são considerados autodestrutivos e demandam atenção. Não são manha, rebeldia ou besteira, enfatizam as entrevistadas. "São comportamentos que representam sofrimento, precisam ser acolhidos e requerem atendimento profissional", afirma Prestes.
ONDE PROCURAR AJUDA?
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, a porta de entrada para o atendimento é a UBS (Unidade Básica de Saúde) do bairro. Quando um jovem é atendido numa UBS com ideias suicidas ou após tentativa de suicídio, é feito o encaminhamento para o Núcleo de Prevenção à Violência (NPV), que avalia quais as linhas de prevenção e cuidado necessárias. Em casos de baixo risco, o jovem é acompanhado na própria unidade pela equipe multiprofissional. Casos avaliados como de médio ou alto risco são encaminhados para os Caps Infantojuvenis (Centros de Atenção Psicossocial).NPV (Núcleo de Prevenção à Violência)
Os NPVs são constituídos por ao menos quatro profissionais dentro das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e de outros equipamentos da rede municipal. Para acolher e resguardar as vítimas, os núcleos atuam em parceria com o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Conselho Tutelar, a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, para avaliar quais ações serão tomadas para proteger cada criança.Caps Infantojuvenis (Centros de Atenção Psicossocial)
A rede do município conta com 33 Caps Infantojuvenis. Os pais ou responsáveis podem levar o jovem diretamente ao Caps Infantojuvenil, que fará a avaliação e, se o caso for mais simples, reencaminhará o jovem à UBS do bairro.Mapa da Saúde Mental
O site, do Instituto Vita Alere, mapeia serviços públicos de saúde mental disponíveis em todo território nacional, além de serviços de acolhimento e atendimento gratuitos ou voluntários realizados por ONGs, e instituições filantrópicas, entre outros.CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188, por chat, por email ou diretamente em um posto de atendimento físico.