Agência CNJ de Notícias
Viver em um abrigo é algo que transforma a realidade de crianças e adolescentes. Mas os jovens que permanecem em acolhimento até completarem 18 anos enfrentam ainda mais dificuldades para se estabelecer na vida adulta. Buscando mudar a situação de quem enfrenta mais esse desafio, a Corregedoria Nacional de Justiça pretende tornar uma de suas diretrizes em normativo a ser observado por todos os tribunais do país. A ideia é que, por meio de parcerias entre a Justiça, sociedade civil, instituições de ensino e empresários, os jovens recebam capacitação para conquistar uma vida digna e autônoma.
Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 32,7 mil crianças e adolescentes estão em acolhimento institucional e familiar no país atualmente. Desses, mais de 10 mil estão na faixa etária entre 14 e 18 anos, o que representa um terço do total de abrigados. "Nossa preocupação é dar uma saída a esses jovens, uma perspectiva de melhora da qualidade de vida e sustentação, evitando que sejam atraídos pela criminalidade, como acontece em muitos casos", explicou a juíza auxiliar da Corregedoria Carolina Ranzolin.
A inspiração é o Programa Novos Caminhos (PNC), criado em 2013 pela Coordenadoria Estadual da Infância e da Juventude (CEIJ) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), juntamente com a Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) e com a Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC). Por meio de parcerias, o programa tem beneficiado meninos e meninas com idade acima de 6 anos que se encontram ou passaram por medida protetiva de acolhimento. O objetivo é desenvolver as potencialidades e contribuir para a construção da autonomia para que tenham uma perspectiva de vida adulta com qualidade e dignidade.
Ao ingressarem no Novos Caminhos, os participantes são acompanhados individualmente e encaminhados a programas de escolarização, profissionalização e atividades complementares. Os cursos de formação são ofertados pelo Sistema S. Após concluírem os módulos de capacitação, os jovens são encaminhados que ao mercado de trabalho. Para que esse processo ocorra de forma adequada e segura, o Programa também prevê a sensibilização e a orientação da comunidade empresarial, que, ao longo de uma década, já contou com mais de 700 parceiros.
Desde sua implementação, o PNC já realizou mais de 13 mil matrículas nos cursos oferecidos por parceiros institucionais; e 1.156 jovens começaram a trabalhar. Em 2021, o TJSC aprovou o investimento de penas pecuniárias no atendimento psicológico dos adolescentes inscritos no programa. Isso resultou no uso de quase R$ 900 mil em consultas para 462 jovens; e mais de R$ 117 mil em atendimento odontológico para 602 meninos e meninas.
Com base em quatro pilares – educação básica e profissional; vida saudável; empregabilidade; e parcerias –, o programa vem ampliando sua atuação. De acordo com o desembargador Sérgio Izidoro Heil, vice-coordenador da CEIJ/TJSC e um dos idealizadores da iniciativa, uma das principais dificuldades no início do programa foi superar dificuldades para trabalho em parceria com a iniciativa privada. "Naquele momento, tivemos de ganhar a confiança das instituições de acolhimento e sensibilizar o setor empresarial para a efetivação de empregos e da aprendizagem profissional. As barreiras foram sendo superadas a partir dos resultados apresentados pelo programa", relembra.
O desembargador destacou ainda que o sucesso do PNC está fundamentado no empenho da equipe técnica de todas as entidades participantes, além do apoio dos dirigentes das instituições parceiras, especialmente do Judiciário. "A partir do alinhamento estratégico e do planejamento individualizado foi possível entender e suprir as necessidades do público-alvo nas diversas frentes de atuação do programa. Dessa forma, ampliamos as ofertas de cursos, serviços e atividades complementares que maximizaram os resultados positivos."
O investimento em recursos humanos também foi destacado pelo coordenador estadual da CEIJ/TJSC, desembargador Álvaro Pereira de Andrade. Ele afirma que cada comarca tem, pelo menos, um funcionário para fazer a interlocução do programa. "Não há oposição à iniciativa em nenhum nível da governança. São cerca de 900 pessoas trabalhando pelo Programa, que não traz custo nem para a criança, nem para o município", conta. Atualmente, há 1,2 mil crianças e adolescentes em atendimento pelo Novos Caminhos em Santa Catarina. "É com entusiasmo que nos esforçamos, porque podemos fazer a diferença na vida dos beneficiados".
Mesmo que as crianças sejam reintegradas às famílias ou adotadas, há a possibilidade de continuarem no programa, caso seja necessário. Já os que completam 18 anos de idade ainda podem ser acompanhado pelo PNC por mais dois anos.
Acolhido por dois anos em um abrigo de Santa Catarina, José Ítalo dos Santos Gomes é um dos jovens beneficiados pelo programa Novos Caminhos. Hoje, aos 22 anos de idade, ele lembra como se sentia perdido quando foi para o acolhimento. "A visão de quem está de fora é que o abrigo é um lugar ruim, mas, para mim, foi um lugar acolhedor, com afeto. Eu tinha medo de perder aquele cuidado quando eu saísse dali. Mas o Novos Caminhos realmente trouxe uma nova perspectiva para a minha vida", conta.
Durante sua permanência no abrigo, Ítalo Gomes fez cerca de 15 cursos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), dos mais variados temas, como finanças, oratória, relações pessoais e empreendedorismo. Ao final do período, ele começou a trabalhar em uma empresa multinacional de alimentos e, depois, em um hospital da cidade. Atualmente, com os conhecimento e experiência adquiridos, Ítalo abriu seu próprio negócio e tem contrato com dois clientes. "O Novos Caminhos salvou minha vida e está salvando a vida de outros tantos jovens com a chance de uma vida diferente."
O jovem disse que foi encaminhado ao mercado de trabalho assim que entrou no programa. "Eles me mostraram uma direção e plantaram uma semente na minha cabeça: o que você quer para a sua vida? Qual a pessoa que você quer ser? E eu abracei todas as oportunidades que surgiram – os cursos, os treinamentos -, dando o meu melhor. Eu queria ser uma pessoa melhor a cada dia", lembra.
Casado há três anos, Ítalo Gomes espera o nascimento de sua primeira filha. Ele afirma que quer ser um pai exemplar e garantir uma vida melhor para sua família. O jovem, que é uma referência para outros adolescentes acolhidos que estão no PNC, ainda assumiu a curatela de seu antigo companheiro de quarto no abrigo, que é deficiente e hoje mora com ele. "Eu agradeço aos parceiros do programa porque, ao se envolverem com os adolescentes, eles salvam vidas."
Durante a comemoração dos 10 anos do PNC, celebrado em agosto, Ítalo Gomes ressaltou que a semente plantada pelos parceiros mostra aos jovens o caminho correto a seguir. "Todos que passaram pelo programa, inclusive as minhas irmãs, são pessoas exemplares, que têm suas próprias famílias, suas casas e um rumo certo na vida." Ele afirmou que era predestinado a ser como os outros garotos e que tinham um destino incerto. "O abrigo mudou minha vida. Eu sabia que não tinha ninguém por mim e essa era minha chance de fazer e ser diferente."
Aos adolescentes que podem desfrutar do programa, Ítalo recomenda que aproveitem a oportunidade para se prepararem melhor para a vida e o mercado de trabalho. "Nunca deixem de sonhar e buscar ser sempre sua melhor versão." Já para os tribunais e parceiros que querem implantar a iniciativa ou um modelo similar, ele diz para não desistirem daqueles de quem estão cuidando. "Vocês vão se surpreender. Lá tem sonhos e alguém que vai se tornar algo além do que se esperava. E os envolvidos poderão se orgulhar de terem contribuído para essa mudança de vida", finaliza.
Os resultados positivos do PNC motivaram o Conselho a dar início à nacionalização da boa prática, em atenção à Diretriz n. 11. A meta orienta que sejam desenvolvidos protocolos institucionais para viabilizar o processo de desinstitucionalização dos acolhidos ao completarem 18 anos de idade. De acordo com a juíza auxiliar Carolina Ranzolin, a Corregedoria estuda a edição de um provimento que tornará a diretriz obrigatória. Até dezembro, devem ser estabelecidos os procedimentos para atender à norma.
A Corregedoria escolheu o PNC por ser um programa consolidado e que conta com três entidades com representação em todas as unidades da Federação – Judiciário (por meio das Coordenadorias de Infância e Juventude), associações de magistrados e Federação das Indústrias e/ou Comércio –, o que possibilita a replicação.
Em 2022, o projeto-piloto começou pela cidade de Manaus. A vice-presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), Joana dos Santos Meirelles, demonstrou interesse pela proposta e já tinha uma interlocução com a Coordenadoria de Infância e Juventude do TJSC. "O que fizemos foi customizar o modelo para a realidade local", conta Carolina Ranzolin.
De acordo com ela, a expectativa era levar a estrutura pronta, mas a partir da experiência no Norte do país, perceberam ser necessário adaptar a proposta. "Depois de alguns encontros, definimos qual a idade o programa iria atender, quantos acolhidos, que tipo de especialização, a partir de qual escolaridade. Por isso, o Acordo de Cooperação Técnica (ACT) foi assinado depois de estruturarmos o plano de trabalho, para poder começar bem."
Em Manaus, o projeto atende adolescentes a partir de 14 anos de idade e engloba três eixos de atuação: aprendizado profissional; saúde; e profissionalização. De acordo com Valda Calderaro, que integra a CIJ/TJAM, a maior dificuldade é o déficit de escolaridade dos jovens. "O Sistema S tem cursos profissionalizantes, mas exigem requisitos, como nível médio". Para superar esse desafio, o tribunal está captando parceiros para oferecer reforço escolar e a participação na Educação de Jovens e Adultos (EJA), para que os adolescentes possam ser nivelados.
Valda Calderaro ressaltou que a equipe técnica está trabalhando pela formalização dos termos de cooperação técnica com os parceiros, para que o programa tenha continuidade e não haja interferências políticas. Além das questões profissionais, o TJAM está buscando parceiros para fornecer passe-livre no transporte público, atividades físicas, saúde bucal e psicológica.
Além da corte amazonense, os tribunais de Alagoas, da Bahia, do Pará, do Rio Grande do Sul, de Rondônia, de Roraima, do Maranhão e do Tocantins já demonstraram interesse na implantação do Novos Caminhos. Para participar, é preciso entrar em contato com a Corregedoria. "A equipe técnica do TJSC está disponível para dar suporte aos órgãos que quiserem implantar o programa, com o apoio e coordenação do CNJ, via Corregedoria", ressalta a juíza auxiliar Carolina Ranzolin.