Há mais de vinte anos, escrevi uma versão do texto abaixo, à época, para uma revista de gastronomia que, infelizmente, não circula mais. Relata fatos ocorridos há exatos trinta anos, onde a paz entre Israel e os palestinos não era certa; o mundo estava inseguro. Rabin e Arafat, mediados por Clinton, poderiam ou não assinar um tratado de paz. No artigo, trato da gastronomia miscigenada e dos vinhos orientais de origens diversas, mas que, à mesa, serviram como uma grande metáfora em louvor da paz e ao entendimento. O texto tornou-se atual, desafortunadamente, pela guerra contra o terror, que se iniciou tem alguns dias, por ação bárbara, covarde e desumana do grupo terrorista Hamas (e seus apoiadores). Quiçá, em breve, os povos do Oriente Médio se unam para, em paz, porem fim ao terrorismo bárbaro e inaceitável que se instalou em solo israelense e palestino. E a mesa seja o lugar de congraçamento, como tem que ser. Segue o texto, adaptado do original:
“A MESA DE HERZLIYA”
Em 1993, outono europeu, estava no fim de uma viagem de negócios em Paris esperando o tempo para aproveitar as delícias daquela Cidade quando, por conta de um telefonema de um cliente e amigo, me vi, no dia seguinte, quase madrugada, no avião da Air France, pousando no Aeroporto Dov Hoz, em Tel-Aviv. Meu amigo e cliente, predador dos meus sonhos parisienses, me esperava no saguão de desembarque. Mesmo com sobrenome árabe não tive qualquer problema na imigração. Lembrem-se: estamos em 1993, no mundo inteiro só se falava dos atentados da OLP e da reação de Israel, porém havia esperança nos ares de Tel-Aviv vez que muito se comentava que Yitzhak Rabin e o líder palestino Yasser Arafat estavam próximos a assinar um Protocolo de Paz mediado por Bill Clinton. Estes pensamentos tomaram lugar na minha mente durante toda a viagem, deixando o Chateau D'Yquém no passado parisiense de algumas horas atrás.
Quando estou a trabalho fujo de almoços de negócios, principalmente na residência do oponente contratual, a distância há que ser mantida para que possibilite eventual rompimento com elegância. Ocorre que fui informado que haveria um almoço na cidade de residência do negociante de Israel. E eis que aos dez minutos para as onze estava no hall do hotel, quando meu cliente me informa que iremos para uma cidade ao norte, chamada Herzliya, fundada na década dos vinte por alguns parentes ascendentes do nosso anfitrião. Procurei disfarçar meu contragosto, mas seguimos viagem falando de negócios.
A residência que nos aguardava era num bairro muito bonito, arborizado, bem situado, belas alamedas, próximo a uma marina. A casa guardava pessoas de amabilidade única e surpresas eno-gastronômicas que me fizeram deixar as lembranças da Paris não vivida muito aquém de um leve suspiro de adeus. O nosso anfitrião, para minha surpresa, não era judeu, sua esposa, sim, de origem árabe, sefaradi. Ele cristão maronita do Líbano, de Biblos, ela nascida em Alepo, Síria, mas trazida muito jovem para Israel, ambos cidadãos israelenses. Tudo isso fiquei sabendo num clima absolutamente acolhedor, enquanto tomávamos um refresco de nome "Subia" — consiste num refresco para a quebra de jejum em dias santos do judaísmo, receita sefaradi, que se obtém do apiloamento de sementes de melão que ficam embebecidas em água por dado período, após tal emulsão é coada e refrescada. Para acompanhar uma pasta azeda de berinjela, que bem contrastava com o refresco.
Após um quarto de hora, a anfitriã nos convidou para "passarmos à mesa", já era quase uma da tarde, quando a porta da sala de refeições se abriu, me deparei com uma surpresa de cores e aromas, indescritível. Uma mesa quadrada, posta para seis pessoas. Parei por alguns segundos para identificar o que estava sobre ela. Lembrei-me que a cozinha israelense é conhecida no mundo inteiro, principalmente por causa das recomendações do ‘Kashrut’ (As Leis Higiênicas), que excluem o consumo de porco, crustáceos e, na mesma refeição, jamais consumir leite (ou derivados) junto com carne. Pude reparar que tal regra estava respeitada destacando, por perceber, que muitos alimentos guardavam semelhança e aparência com os que conhecia da culinária tradicional árabe; havia kibe cru, babaganush (pasta de berinjela), hommus (pasta de grão de bico), muitas saladas e alguns pratos absolutamente desconhecidos, aos quais fui, no momento oportuno, apresentado. Um destaque especial para as ótimas azeitonas com anchovas, entrada típica daquela região de Israel. Trata-se de azeitonas sem caroço recheadas com anchovas e temperadas com azeite e especiarias. Outro prato diferente tem o nome de "Krupnik", é uma entrada quente: cevada cozida com cenoura e cebola, previamente refogados no azeite e coberto com salsa. Como acompanhamento, numa cesta a conhecida Pitta (o pão sírio na versão tradicional, porém mais fino) e na outra a deliciosa "Matzá" (pão de azume), trata-se de um pão endurecido que lembra biscoito de água e sal, mas com sabor e textura inigualáveis.
Para minha surpresa, pois pensava que por tratar-se de "almoço de negócios" não consumiríamos bebida alcoólica, nosso anfitrião abriu uma garrafa de um vinho branco israelense. Tratava-se de um "Yarden Galilee" Sauvignon Blanc, cujo rótulo amarelo trazia estampada uma "lâmpada de Aladin". O vinho, apesar de um pouco rústico, me surpreendeu. Primeiro, não sabia que Israel produzia vinhos brancos, ainda mais com castas europeias. Depois, a harmonização foi perfeita. Na verdade estava afigurando-se muito mais que harmonização, mas uma clara harmonia desconhecida.
Após as entradas, acima descritas, foram retirados os pratos usados e travessas, menos as cestas de pães que foram reabastecidas, e servidos os pratos principais — a despeito de eu já estar quase satisfeito, pois fiz questão de tudo provar até então servido. Primeiro, foi servida uma perna de carneiro assada com especiarias e romã. Carneiro este que me fez esquecer o Gigot parisiense. O sabor é inigualável, um contraste incrível entre a romã e o sabor da carne. Nosso anfitrião, para minha surpresa, abriu uma garrafa de um vinho libanês. O Chateau Musar, safra 1983, portanto com dez anos de vida. Estava esplêndido, lembrando um bom bordolês. Ao contrário das tradições usuais, quem o serviu foi a anfitriã. E aí mais um sinal da harmonia. Uma típica "mama Idiche" servindo um vinho libanês a estrangeiros. Veio ao meu pensamento uma só reflexão. A discórdia está na mente dos dirigentes, não do povo.
Terminado o cordeiro, pensei que nada mais seria servido. Que nada: ainda nos esperava um "Arroz Marrokai", semelhante ao arroz marroquino dos árabes, só que feito com frango, especiarias, amêndoas e coentro (para minha surpresa, vez que sempre associei o coentro aos pratos lusitanos e do Alentejo). Ainda havia croquete de batatas, folhas de uva recheadas e arroz com tâmaras, para a eventualidade de alguém não gostar de frango. Provei de tudo, mas o ponto alto foi o Arroz Marrokai e o vinho que foi servido. Trata-se de outro surpreendente vinho israelense de casta francesa — Cabernet Sauvignon —, de nome Gamla, safra 1987. Vinho encorpado, rico em aromas, me recordo do frescor das frutas silvestres no nariz. Vim a saber que tal vinho provinha de vinhas cultivadas nas Montanhas de Gollan com a supervisão do Baron Edmound de Rothschild. Da lembrança digo que tais vinhos são comparáveis aos bons vinhos da Califórnia.
Depois de tudo isso, sim, havia sobremesa. Compotas de Frutas, destaque especial para a de maçã, ficou na memória e, após, para acompanhar um vinho de sobremesa israelense, de nome Ben Ami, 1981, um doce chamado Esh el Seraya, que lembrava um cookie de mel, porém um pouco mais macio e aromático. Após esta, mais que lauta, refeição, uma certeza conclusiva das minhas reflexões: se a mesa pode receber sobre ela e à sua volta culturas e religiões diversas, se dentro da mesma taça se deita o vinho de Bekká e de Gollan, nada, mas nada mesmo, pode justificar a persistência dos generais em manter a guerra. O "aperto de mão" de Arafat e Rabin, alguns dias depois, não era nada mais nada menos que o reflexo, a projeção, do que ocorreu naquela mesa de Herzliya.
SALUT!