Fonte: Agência Senado
Destinada a discutir o Projeto de Lei 1338/2022, que regulamenta a oferta domiciliar da educação básica, a audiência pública da Comissão de Educação (CE) foi marcada pela controvérsia sobre o chamado homeschooling. Enquanto debatedores da área educacional ouvidos pelo colegiado associaram o ensino em casa especialmente à falta de socialização, ao risco de violência no ambiente doméstico e à desvalorização dos professores, representantes de entidades defensoras da educação domiciliar argumentaram a favor da liberdade de escolha e da primazia das famílias na orientação dos filhos. A audiência pública, que atende a uma série de requerimentos de membros da CE, é a primeira do novo ciclo de discussões sobre o projeto de lei, que já foi alvo de debates na comissão em 2022.
Priscila Cruz, presidente do Movimento Todos pela Educação, manifestou sua "angústia" diante do tema e criticou o texto aprovado na Câmara por liberalizar excessivamente o ensino em casa. Ela questionou os mecanismos de avaliação a que os estudantes dessa modalidade seriam submetidos, e chamou atenção para os elevados índices de violência doméstica da qual as crianças são vítimas.
Na possibilidade ampliada de estudar em casa, elas [as crianças] estarão inviabilizadas, estarão fora do radar do campo de visão do equipamento público.
A debatedora também alertou para a proliferação descontrolada de instituições destinadas ao apoio ao ensino domiciliar e alertou que o convívio de crianças e adolescentes com a diversidade humana é necessário para a formação de uma sociedade democrática.
No mesmo sentido, o presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Claudio Augusto Vieira da Silva, disse que a criança tem direito de expandir sua identidade na sociedade por meio da convivência com o outro. Ele chamou a atenção para a realidade da "sociedade violenta a partir do ambiente doméstico", situação que ficou mais evidente na pandemia de covid-19.
Se estivermos com essas crianças nesse ambiente onde não há outras interferências, estamos optando deliberadamente a expor crianças a um risco alto.
Segundo Vieira da Silva, o homeschooling constitui privatização e terceirização, e não há estimativa dos custos para o Estado para a fiscalização e o controle da atividade.
Violação de direitos
Representando a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Patrícia Raquel Baroni associou a educação domiciliar à possibilidade de violação dos direitos e da integridade das crianças, que, segundo ela, vai contra a política de educação inclusiva e agrava a insegurança alimentar. Ela sublinhou que o projeto ainda desvaloriza os professores.
É desqualificado o ofício docente nessa perspectiva prevista no PL, ao definir o ofício docente como passível de exercício por qualquer pessoa com ensino superior.
Gerente da Câmara de Educação Básica da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec) — entidade que reúne instituições de ensino com 1,5 milhão de alunos —, Roberta Guedes também destacou a desvalorização do ofício e da posição social dos profissionais de educação e questionou o movimento de "distanciamento do diferente".
Um professor em casa era praticamente alvo de veneração. Hoje temos visto todo mundo falando de educação como se todo mundo fosse professor, como se fosse normal e comum.
Representando o Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Contee), Gilson Luiz Reis disse que a felicidade do ser humano só se realiza na vida em sociedade, incluindo a escola, e retirá-la desse ambiente é privá-la de sua formação como "ser total". Ele frisou que a discussão sobre a escola domiciliar é elitista num país em que milhares de crianças estão fora da escola e o Estado enfrenta o desafio da educação em tempo integral.
Temos milhões de desempregados e subempregados ( ). O que devemos discutir é o Estado garantindo educação, e não uma minoria de milionários querendo construir um tipo de educação a partir de suas ideologias religiosas e conservadoras e a partir de sua condição material e financeira.
Pelo homeschooling
A doutora em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente do Instituto Ives Gandra, Ângela Gandra, afirmou a família como "primeira educadora" e disse que o ensino domiciliar é um direito humano que não é proibido pela Constituição, respeitadas as demais normas do ensino. Segundo dados que apresentou, mais de 60 países já legalizaram o homeschooling. Ela admitiu que, na realidade brasileira, poucos pais teriam a disposição de ensinar seus filhos em casa, mas criticou a rede de ensino público.
Os professores muitas vezes têm medo dos alunos porque as situações familiares não são fáceis. Os pais ficam aflitos com a ideologização. Há um certo utilitarismo. É importante deixar os pais julgarem.
Sobre a associação da educação domicilarcom abusos domésticos contra crianças, Ângela Gandra alertou que esses crimes fogem ao perfil dos pais que educam os filhos em casa, e ressalvou que "não se pode julgar os apóstolos por Judas".
Diego do Nascimento Silva, presidente da Associação de Famílias Educadoras de Santa Catarina, diz que o homeschooling é uma "realidade imparável" que atende aos melhores interesses da criança. Para ele, mais que um direito, é um dever dos pais preocupar-se com a educação de seus filhos.
Nossas crianças são o tesouro de nossa pátria. Elas precisam de proteção, de cuidado, e uma educação de qualidade, com dignidade e com liberdade.
O presidente da Comissão, senador Flávio Arns (PSB-PR), salientou seu esforço, quando relator do PL 1338/2022 — depois a relatoria foi passada à senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO) —, para compreender a situação do projeto, e destacou o interesse pelo assunto de senadores de várias vertentes.
Eu visitei casas de pessoas que ofereciam educação domiciliar, falei com crianças, jovens, pais e famílias, fiz reuniões de vídeo com todos os convidados que eram apontados pelo Brasil ( ). É um tema importante, e é por isso que o estamos debatendo.