De Mato Grosso do Sul, a indígena Guarani-Kaiowá Valdelice Veron foi homenageada em premiação global nos Estados Unidos. Representando seu povo, ela fez um discurso pedindo por justiça e denunciando a violência contra os indígenas no Brasil.
Filha de Marcos Veron, cacique assassinado em 2003, Valdelice cresceu acompanhando as retomadas e se tornou ela mesma uma liderança indígena. Neste ano, foi escolhida pela Vital Voices Global Partnership, organização fundada por Hillary Clinton, como uma das homenageadas do 21º Prêmio anual de Liderança Global.
Detalhando sobre a motivação da homenagem, a organização apontou que Valdelice lidera sem medo uma luta com risco de vida para defender sua terra natal e seu povo. "Por décadas, ela e sua tribo foram alvo de violência por causa de seu ativismo e, com proteções legais limitadas por sua identidade indígena, seu ativismo se torna mais perigoso a cada dia".
Durante a recepção da homenagem em Washington, nos Estados Unidos, a Guarani-Kaiowá começou seu discurso dizendo que leva consigo os gritos de um povo que luta pela vida.
"Nos últimos anos, foram executados mais de 300 líderes indígenas incluindo mulheres, crianças e caciques, sendo que alguns corpos desapareceram. Nós, líderes indígenas, continuamos sendo alvos desses pistoleiros. Vivemos com violência, intimidação, perseguição e todo tipo de emboscadas e assassinatos", disse Valdelice.
Reafirmando a luta travada desde seus antepassados, a líder completou o discurso dizendo que a luta pela terra irá continuar "Nós vamos seguir demarcando nossa terra com nosso próprio sangue. Nós somos os povos originários, pertencemos à terra e à floresta é essência da vida Kaiowá, algo que aqueles que destroem a terra jamais irão entender. Terra, vida, justiça e demarcação".
Em 2021, Valdelice foi matéria do Lado B no quadro "Voz da Experiência" e contou sobre trechos de sua trajetória. Graduada em Ciências Sociais pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), mestra em sustentabilidade dos povos e terras tradicionais pela UnB (Universidade de Brasília), a indígena também é doutoranda em Antropologia Social.
Na época, ela decidiu compartilhar sobre as lutas de sua família e de seu povo, assim como fez durante seu discurso. "Eu que sou uma Guarani-Kaiowá posso confirmar: a gente não se esquece do nosso território. De onde realmente viemos. Podem passar anos e anos, mas o nosso tekoha continuará sagrado, mesmo nós estando longe dele. Tekoha não é "terreno". É história, memória, ancestralidade. É o modo de sermos quem somos", disse.
Aos 6 anos, Valdelice começou acompanhar seu pai e narra que a primeira retomada em que esteve foi na Terra Indígena de Pirakua, em Bela Vista. Ainda criança, durante uma perseguição, viu a primeira morte de uma parente.
"Alguns pistoleiros vieram em alta velocidade no encalço da gente. Minha amiguinha na época caiu do caminhão em uma curva e o carro logo atrás simplesmente passou por cima. Eles fugiram porque o que aconteceu bastava como sinal. Descemos. Ela ainda estava a olhar no meu rosto. Peguei na mão dela e ela fechou os olhos. Essa foi a primeira morte que presenciei, mas outras ainda iriam suceder. Minha mãe falou: "vamos rezar aqui para ela ficar bem'", relembrou Valdelice.
E, entre seus familiares, a liderança nunca esqueceu da morte de seu pai, em 2003.
"Na madrugada do dia 13 de janeiro, fomos atacados novamente. Sequestraram o meu pai. Pegaram meu irmão, amarraram, queimaram o ombro dele com gasolina. Algemaram meus outros irmãos. As mulheres, violentaram elas na frente dos meus irmãos. Meu pai, como em um último esforço, gritou na língua kaiowá: 'não chorem, não se entreguem. A gente está aqui na luta por terra, vida, justiça e demarcação'. Então, mais de 30 pistoleiros o rodearam, torturaram, atiraram e mataram meu pai e cacique da aldeia, Marcos Veron. Foi ali, em meio aquela tragédia, que não só mataram o velho guerreiro, mas mataram o nosso medo também".