"A confiança entre o treinador e o falcão não nasce de uma hora pra outra", disse ele. Khaled nasceu na Síria e vive em Doha, no Qatar, há vinte anos, onde compartilha com clientes, com os filhos e com jornalistas que eventualmente o procuram um pouco do que sabe sobre a arte de domar falcões. Esse ofício ele aprendeu com o pai, cujo olhar imponente observa a movimentação da loja de um porta-retrato na parede.
Neste domingo às 13h (de Brasília), os falcões de Khaled terão um dia de folga, porque o Qatar enfrentará o Equador na abertura da Copa do Mundo, e o treinador fechará sua loja para estar na arquibancada do estádio Al Bayt. O sírio se juntará a uma multidão de outros trabalhadores imigrantes do Qatar que terão a oportunidade única de viver a primeira Copa sediada no Oriente Médio.
Nunca os imigrantes do Qatar tiveram tantos holofotes sobre si quanto nos últimos anos, quando esse pequeno país importador de mão de obra precisou construir do zero a infraestrutura necessária. Poucos desses imigrantes chegaram ao Qatar para domar aves de rapina, como Khaled. A maioria foi importada para construir estádios, prédios, linhas e estações de metrô, ruas e estradas e tudo o que país precisou para receber o Mundial.
Ao todo, os trabalhadores imigrantes compõem cerca de 95% da força de trabalho do Qatar, o que representa quase 2 milhões de pessoas vindas de países como Índia, Bangladesh, Nepal, Sri Lanka, Nigéria, Gana e Etiópia. Eles ajudaram a construir a Copa e agora terão o direito de usufrui-la, já que um morador do Qatar pode conseguir ingressos pelo equivalente a R$ 60.
Os números dizem muito, mas não tudo. Com o início do torneio, nós agora podemos encontrar esses trabalhadores, saber seus nomes, seus rostos e suas histórias. Eles estão em todos os lugares da cidade. Em certo sentido, eles são a cidade.
Em Doha não há folha que caia da árvore sem que um imigrante esteja pronto para recolhê-la e não há carro de aplicativo cujo motorista não tenha vindo de muito longe, como o indiano Assan, que já morou na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, mas escolheu fazer de Doha sua casa porque os qataris são gentis e educados. Também não há marido que não feche os olhos e não pense na esposa, deixada no interior da África ou do Sul da Ásia, à espera de um retorno sem data para acontecer.
A Copa do Qatar é a Copa de Susan Mmbone, que saiu de Kisumu, no Quênia, depois de se formar na faculdade e hoje vende açaí em um quiosque no centro de Doha. A filha Aalyia ficou com a avó e ouviu da mãe que um dia as duas viveriam juntas na Europa. Essa é a Copa de Maneesh Gopalan, de Kerala, na Índia, que trabalha como sous-chef do restaurante Era e sente saudades do arroz temperado da mãe, Mallika. Essa é a Copa de Lawson Innocent, de Volta Region, em Gana, que já foi assistente de vendas, segurança privado e hoje monta toldos e barracas para eventos da Fifa. Sua esposa e seus três filhos ficaram na África, de onde um dia ele sonha em tirá-los.
No mercado Souq Waqif, o maior de Doha, o indiano Shafeeq Vallumbrath vende relógios de pulso e óculos de sol, mas não tem tempo para ir à praia, o afegão Najeebullah Muradi produz espadas árabes curvas, usadas na dança ou na guerra, e Ali Ali, sentado de pernas abertas no chão da própria loja, serra os chifres de uma cabra do deserto, diante do olhar petrificado de um leão empalhado, a venda por R$ 37 mil.
Passear pelo Corniche, o principal cartão postal do país, é se perder no meio de uma arquitetura que impressiona, mas também perder de vista a história dos homens que juntaram todo o aço, o concreto e o vidro. As fechadas dos prédios mais imponentes espelham o céu sem nuvens do inverno e às vezes também as pequenas ondulações do golfo, mas nunca as digitais dos milhares de imigrantes que ergueram a suntuosa capital qatari.
Quando a bola rolar logo mais, e as atenções do mundo estiverem voltadas pra dentro campo, os imigrantes seguirão vendendo açaí e relógio, treinando falcões e empalhando leões, orientando os turistas pelas amplas ruas de Doha e talvez esperando o dia em eles possam voltar pra casa.