Ao longo da Ășltima dĂ©cada, um fenômeno complexo e controverso ganhou espaço no ambiente digital quase que imperceptivelmente. Em diferentes paĂses, pessoas que se denominam indivĂduos-alvo (ou target individual) passaram a se reunir em grupos e fóruns digitais onde denunciam a ação orquestrada de pessoas e organizações para desacreditĂĄ-las, prejudicĂĄ-las e, no limite, levĂĄ-las à morte.
Psicoterapeuta e assistente social Liz Johnston, professora da Universidade PolitĂ©cnica da Califórnia - Gina N. Cinardo/DivulgaçãoCom a validação de quem acredita ser vĂtima do mesmo tipo de assĂ©dio, algumas dessas pessoas deixaram o espaço virtual para atuar tambĂ©m no ambiente analógico. Criaram associações e passaram a encher assembleias estaduais e câmaras municipais de pedidos de informação e sugestões de leis de iniciativa popular para proteger as vĂtimas do chamado gangstalking - a crença de que se Ă© alvo de uma perseguição organizada por um grupo desconhecido de pessoas com acessos a modernos dispositivos capazes de interpretar os pensamentos e modificar o comportamento de suas vĂtimas.
Professora da Universidade PolitĂ©cnica da Califórnia, a assistente social e psicoterapeuta Liz Johnston se interessou pelo tema ao constatar que dois de seus pacientes compartilhavam a mesma convicção. "Buscando meios de ajudĂĄ-los, comecei a pesquisar", contou Liz, que não tardou a perceber a relevância do tema e suas implicações: embora incerto, o nĂșmero de pessoas que se autodeclaram indivĂduos-alvo não Ă© irrelevante.
Liz estĂĄ finalizando um livro que deve ser publicado em breve, pela editora inglesa Ethics Press, com artigos inĂ©ditos escritos por pesquisadores que jĂĄ publicaram trabalhos acadĂȘmicos sobre o gangstalking. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a professora concedeu à AgĂȘncia Brasil, por e-mail.
AgĂȘncia Brasil: Primeiramente, o que Ă© gangstalking? Quais suas especificidades?
Apesar disso, os TIs são frequentemente considerados paranoicos. Um diagnóstico que pode criar mais problemas do que ajudar a resolver a questão. HĂĄ, inclusive, um debate sobre o quão Ă©tico Ă© rotular pessoas com diagnósticos estigmatizantes como paranoia, especialmente diante da ausĂȘncia de tratamentos efetivamente eficazes. Outra questão Ă©tica Ă©: por que mĂ©dicos e psicólogos tĂȘm o poder e o privilĂ©gio de decidir se os clientes estão delirando? A definição de "ideia delirante" Ă© complexa. Basta ver que muitas pessoas acreditam em fenômenos como fantasmas ou ovnis [objetos voadores não identificados] e não são taxadas de delirantes.
AgĂȘncia Brasil: Fazer essa ressalva em relação ao diagnóstico não pode ser compreendido como uma validação da crença persecutória dessas pessoas?
JĂĄ o Departamento Federal de Investigação [FBI] infiltrou agentes secretos em organizações polĂticas, conduzindo projetos secretos e ilegais de vigilância como parte do seu programa de contrainteligĂȘncia. De ativistas dos direitos civis a integrantes da Ku Klux Klan foram alvo da vigilância e de ações para desacreditĂĄ-los. As informações a respeito desses fatos estão disponĂveis na internet, e os TIs acabam recorrendo a elas para fundamentar a crença de que eles tambĂ©m estão sendo perseguidos. Minha tese Ă© que os indivĂduos-alvo tĂȘm pouco ou nenhum apoio [social]. E que, talvez, nesses casos, a ideia de que um grupo de pessoas se importa com vocĂȘ a ponto de persegui-lo acabe funcionando como uma espĂ©cie de comunidade de apoio. Da mesma forma como os grupos sobre gangstalking, nos quais esses indivĂduos encontram outras pessoas que creem neles que não os rotulam como paranoicos ou delirantes.
AgĂȘncia Brasil: Evitar termos diagnósticos Ă© para não estigmatizar as pessoas?
AgĂȘncia Brasil: Em suas pesquisas, a senhora conseguiu identificar a origem dos termos gangstalking e indivĂduos-alvo (TIs)? Desde quando esse tema e vem despertando o interesse de profissionais da saĂșde e acadĂȘmicos?
AgĂȘncia Brasil: HĂĄ registros de que esse fenômeno esteja ocorrendo em outros paĂses alĂ©m dos Estados Unidos e do Brasil? HĂĄ pessoas estudando o gangstalking a sĂ©rio em outras partes do mundo?
AgĂȘncia Brasil: O que a motivou a estudar o tema? Por que a senhora crĂȘ ser importante identificar, descrever e compreender o gangstalking quando alguns especialistas tratam o assunto como uma tĂpica manifestação psicótica, fenômeno jĂĄ bastante estudado?
AgĂȘncia Brasil: Considerando o pequeno nĂșmero de estudos sĂ©rios, Ă© possĂvel traçar um perfil das pessoas que se identificam como "vĂtimas" de gangstalking? A senhora crĂȘ que as principais caracterĂsticas se mantenham, independentemente da nacionalidade ou cultura, ou tendem a variar?
AgĂȘncia Brasil: No Brasil, hĂĄ indivĂduos-alvo que manifestam a crença de que seus perseguidores são grupos a serviço de forças malignas ou diabólicas que pretendem corrompĂȘ-los e desviĂĄ-los do caminho do bem. Algumas dessas pessoas sustentam que os indivĂduos-alvo são escolhidos por Deus, e daĂ os esforços para desacreditĂĄ-los, adoecĂȘ-los e levĂĄ-los à morte. O que a senhora pensa sobre isso? Esse aspecto religioso poderia tornar o delĂrio persecutório mais preocupante?
AgĂȘncia Brasil: No Brasil e nos EUA, hĂĄ associações legalmente constituĂdas para promover a crença e defender os interesses dos indivĂduos-alvo. Petições, pedido de informações e propostas de leis de iniciativa popular vĂȘm sendo apresentadas a legisladores de diferentes cidades e estados com base na atuação dessas entidades. A senhora conhece a abrangĂȘncia das organizações norte-americanas? AtĂ© que ponto elas podem propagar esse sistema de crenças persecutórias e mobilizar pessoas?
AgĂȘncia Brasil: A senhora pode falar um pouco mais sobre seu livro?
Ă importante procurar ajuda de um profissional capacitado para lidar com situações difĂceis a fim de manter a saĂșde mental. O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece um serviço de escuta acolhedora e apoio emocional, disponĂvel no telefone 188. HĂĄ tambĂ©m o Mapa da SaĂșde Mental, ferramenta que permite a busca de serviços pĂșblicos e gratuitos por localidade.