Atualmente, existem dois sistemas de registro de armas no PaĂs – o do Exército e o da PF – e eles não se comunicam. O Sigma é onde ficam os dados sobre colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, os chamados CACs, incluindo aĂ os registros dos clubes de tiro. JĂĄ o Sinarm é onde as demais pessoas registram suas armas. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança PĂșblica mostra que havia em 2021 no Sinarm mais armas com particulares do que com as forças de segurança.
No caso do Sigma, o Exército alegava não ser possĂvel informar os estoques institucionais. Os estoques particulares incluĂam então 1.781.590 registros ativos, sendo 957.351 em posse de CACs. Ao todo, segundo o Fórum, o total do acervo particular de armas de fogo no PaĂs em 2022 era de 4.429.396, entre registros regulares (Sinarm e Sigma) e irregulares (no Sinarm). "Entre outros aspectos, isso significa dizer que de cada trĂȘs armas de fogo em estoques particulares, uma estĂĄ em situação irregular", afirma o documento
No ano passado, o Exército saiu da tarefa de fiscalizar a importação de armas e munições importadas. Muitos dentro da Força veem mesmo com bons olhos a entrega desse "abacaxi" à PolĂcia Federal, pois não haveria estrutura suficiente para fiscalizar os CACs, levando à repetição de casos de traficantes de drogas e de seus familiares registrados no Exército para comprar fuzis, espingardas e pistolas para facções criminosas. Aproveitando as brechas na legislação bolsonarista, os bandidos conseguiam comprar arsenais por um preço até dois terços mais barato do que o das armas contrabandeadas da BolĂvia e do Paraguai.
Ao todo, 554.875 novas armas entraram em circulação no PaĂs nos dois Ășltimos anos – 188.288 registradas no Sigma, um aumento de 200% em relação ao perĂodo anterior. A porteira aberta por Bolsonaro permitia a compra de até 15 fuzis e de milhares de munições por ano pelos CACs. Os efeitos dessa polĂtica de armas que tentava trazer para o Brasil hĂĄbitos americanos sem levar em conta a existĂȘncia de facções criminosas foi sentida nas ruas por policiais estaduais e federais. Para o coronel José Vicente da Silva, ex-secretĂĄrio nacional de Segurança PĂșblica, houve excesso de liberalidade no acesso farto a armas e a munições.
Por causa dele, uma equipe de federais foi recepcionada a tiros por um CAC, em uma operação no Rio Grande do Silva, que deixou um policial baleado. Quem conta é o policial federal Roberto Uchoa, que foi responsĂĄvel pelo Sinarm no Rio. "Os agentes não sabiam que o alvo era CAC, pois a PF não tem acesso aos dados do Exército." Uchoa esteve no grupo da transição que aconselhou o novo governo sobre as armas. "O objetivo do recadastramento não é acabar com o Sigma, mas incluir as armas de lĂĄ no Sinarm. É um passo para a unificação dos bancos de dados, cuja separação sempre foi uma coisa absurda", afirmou.
Outro ponto que deve aumentar o poder da PF e diminuir o do Exército foi a revogação do chamado porte de trânsito, um instrumento criado em 2017 que fora desvirtuado por CACs para permitir o porte irrestrito de armas de fogo. A medida foi anunciada ontem. O porte permitia às pessoas andar com as armas carregadas de casa ao clube de tiro. Mas o documento passou a burlar a lei e justificar o porte até de madrugada. "Criaram CACs que funcionam 24 horas só para as pessoas andarem armadas à noite", contou Uchoa. De acordo com ele, a ideia é voltar ao status anterior, com a guia de trânsito, mas com a arma desmuniciada.
Além de assistir ao crescimento do poder da PF, as Forças Armadas se transformaram nas primeiras horas do governo Lula em alvo da raiva e do ressentimento de militantes bolsonaristas. O deputado federal eleito pelo PL Gustavo Gayer (GoiĂĄs) escreveu: "As Forças Armadas viverão seus piores momentos. Além de jĂĄ serem odiadas pela esquerda, passarão a ser rejeitadas pelas pessoas de bem. Baterão continĂȘncia para um bandido e sofrerão humilhações diĂĄrias. Usar a farda serĂĄ uma vergonha. Esse é o fim das FA (Forças Armadas)."
Outros compartilhavam no Twitter ofensas aos militares, deformando o lema do Exército, braço forte, mão amiga (braço fraco, mão traĂra). E representavam o sĂmbolo da Força com uma melancia sobre um fundo vermelho. Revoltados com o discurso de sĂĄbado do general Hamilton Mourão, extremistas marcharam até a proximidade das casas dos oficiais generais, no setor militar urbano, em BrasĂlia, para ofendĂȘ-los porque se recusaram a dar um golpe de Estado contra a posse de Lula. Foram contidos pela PolĂcia do Exército.
Enquanto isso, Bolsonaro abandonava o PaĂs rumo à Flórida. O mito foi em avião da Força Aérea, usando recursos pĂșblicos para emular a fuga de FulgĂȘncio Batista, antes da chegada dos barbudos ao poder. Seus crĂticos chamam a isso de "vergonha". Mas ao contrĂĄrio do ditador cubano, Bolsonaro deve acertar as contas com a Justiça eleitoral e com a comum se quiser ser novamente candidato, assim como Lula.
Bolsonaro simbolizou um projeto ousado na RepĂșblica: excluir o estado de bem-estar social e conviver com as eleições. Ou seja, como diria Oliveiros S. Ferreira, o grande nĂșmero devia ser convencido a não ter vantagem para se subordinar ao pequeno nĂșmero. O insucesso do ex-presidente se deve a trĂȘs razões: não criou um partido para ser o nĂșcleo do poder no Estado; o PT jĂĄ havia feito o Bola FamĂlia, vedando-lhe a deriva populista usada por Orban na Hungria; e a ausĂȘncia do inimigo externo, fosse muçulmano ou imigrante que disputasse emprego com os brasileiros. DaĂ a necessidade de recriar o "inimigo comunista".
Terminado esse governo, a perda de espaço na nova administração era algo previsto pelos generais. Os novos comandantes das trĂȘs Forças compareceram à cerimônia no Planalto para assistir à posse e ouvir o discurso do novo chefe. SaĂram em silĂȘncio. Nenhum atentado aconteceu em BrasĂlia, e Lula subiu a rampa, como os radicais diziam que não ia acontecer. Nos quartéis, o toque de alvorada foi ouvido hoje, assim como serĂĄ amanhã e depois. Todo o barulho ficarĂĄ nas ruas e nas redes sociais. É nas ações indiretas e no silĂȘncio dos gabinetes que serão dados os próximos passos da relação entre o poder Civil e o Militar no Brasil.