“A partir daí, eu quis voltar a estudar. E, na época, eu fui numa escola próxima de casa, e eu estava ainda no Ensino Fundamental. E essa professora – hoje ela é minha amiga – mas na época ela me disse com todas as letras: "você não pode estudar aqui porque você é cego. Você tem que estudar onde só cegos estudam". E aquilo me doeu, foi o primeiro obstáculo que eu encontrei depois que eu perdi a visão. Eu me lembro que eu chorei tanto aquele dia, eu passei mal. Mas alguém ouviu essa conversa e buscou as autoridades”, prosseguiu,
“Aí depois de uma semana, essa diretora me chamou, junto com uma pessoa do município, e essa pessoa falou: "você vai estudar aqui". Se eu fizesse uma prova e tivesse uma nota boa, poderia estudar naquela escola. Ela me falou: "João, não desista, porque você está abrindo portas para outras pessoas. E a pessoa que abre portas, ela sofre. Não desista". Agora você imagina, eu perdi a visão com 39 anos, não tinha terminado, até então, o Ensino Fundamental, a antiga quarta série. Eu deixei de estudar com 15 anos, estava com 39 anos, não sabia mais nada. Mas aí tinha uma vizinha minha que tinha um cyber, ela me perguntou se eu tinha boa memória, e ela antes da prova me levou no computador, me explicou as coisas direitinho para eu fazer a prova. O menor ponto que eu fiz na prova foi 8,5. O resto tudo 9, 10. E aí não teve como eu ser recusado na escola”.
João terminou o Ensino Fundamental, fez o Enem e foi para a sua primeira graduação: Comunicação Social – Jornalismo. Fez estágio como repórter e, em 2016, foi o primeiro e único cego repórter em TV no Brasil. Sentiu a necessidade de estudar mais um pouco, cursou Letras na UEMS e fez pós-graduação. Tudo através do braile. “E o braile me proporcionou acesso a tudo isso. O braile é insubstituível. Já tentaram várias vezes substituir o braile com as novas tecnologias, mas não tem como, ele é a escrita do deficiente visual. É a base, é o começo. E quando eu estou em contato com o braile, eu esqueço de tudo. O Braile para mim é como o amanhecer do dia. O Braile me conduziu ao mundo da educação”.
A pedagoga Astrogilda Maria José nasceu cega, em área rural, no Estado de Mato Grosso, no município de Rondonópolis. Veio para Campo Grande para estudar com nove anos, porque não tinha escola para cegos nem em Cuiabá nem em Rondonópolis. Fez toda a sua escolarização utilizando o sistema braile. “Eu aprendi a escrever com a reglete, que é tipo uma prancheta, que tem uma régua que eu abro para encaixar a folha de papel no meio. Como eu vou perfurar o papel, a folha não pode sair do lugar. Esse equipamento com o qual eu vou perfurar o sistema braile, como a gente vê na biografia do Louis Braille, que foi quem desenvolveu o sistema, foi o instrumento com o qual ele furou o olho e ficou cego, pois o pai dele era sapateiro. Então ele usou um instrumento parecido com o que causou a cegueira dele para poder fazer a escrita braile”.
“Aí quando eu estava com 19 anos eu fui convidada para fazer um treinamento na Telems, que era a empresa de telecomunicações, estatal. Fiz a capacitação, fui aprovada e trabalhei 18 anos como telefonista de PABX. Na época da privatização a maioria dos telefonistas foi demitida e aí eu fiz o concurso para o Tribunal de Justiça e, em 2019, quando me aposentei, estava trabalhando no Tribunal Regional do Trabalho. Hoje eu coordeno um projeto de tecnologias para a pessoa idosa lá no Ismac [o Instituto Sul-Mato-Grossense para Cegos Florivaldo Vargas].
Astrogilda explica que o sistema braile faz parte de toda a sua vida. “Hoje, por exemplo, eu pego uma caixa de remédios, Hoje nós temos este privilégio, eu fiquei sabendo que o Brasil é um dos únicos países que tem as caixas de medicação escritas em braile. E aí eu já leio, anoto número de cartão de crédito em braile, porque se eu quero fazer uma compra pela internet e eu estou sozinha em casa, eu consigo fazer. Às vezes, anoto em braile alguns números de telefone, porque hoje com o celular a gente está mal acostumado e não decora mais número de telefone. O sistema braile é fundamental na minha vida”.
A coordenadora da Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaias Paim, Eleuzina Crisanto de Lima, convida a todos para conhecer o Espaço Acessível da biblioteca. “Nosso acervo em braile é pequeno, mas é muito rico. Hoje nós temos aqui cerca de mil livros em braile. A Biblioteca Isaias Paim é um marco na área da acessibilidade porque ela tem o suporte: a impressora Braile, a máquina Perkins, a lupa para baixa visão, o teclado colmeia para mobilidade reduzida Então nós somos um marco em Campo Grande, para atender o deficiente visual. Todo este acervo está disponível. Se o leitor não puder ficar aqui no espaço, ele pode fazer o cadastro e emprestar estes livros, ele pode vir aqui e imprimir na impressora Braile, pode utilizar esse espaço reservado para a acessibilidade. E é bom frisar que estamos abertos, inclusive aos sábados, para as pessoas se apoderarem deste acervo, que não é toda biblioteca que tem”.
No ano passado, a biblioteca ofereceu o primeiro curso de braile aberto a toda a população, ministrado pelo professor João Guanes. O curso foi considerado inédito, porque foi ministrado fora das dependências do Ismac. E a coordenadora da Biblioteca anunciou uma nova edição do curso para 2023. “Sobre o Curso de Braile, vamos fazer uma nova edição este ano, em março. Porque nós tivemos uma procura muito grande deste curso no ano passado. A gente sempre fala que o deficiente visual, ele só fica no Ismac. Então, ele tem que entender que a Biblioteca Isaias Paim é pública, é para todos, e que nós temos este suporte informacional para atender a acessibilidade”.
“Eu dei o Curso de Braile aqui na Biblioteca Isaias Paim”, lembra João Guanes. “Houve vários professores que fizeram esse curso, três pessoas com deficiência visual. Eu fiquei muito orgulhoso, eu fui o primeiro a fazer esse curso aqui na Biblioteca, e as pessoas elas absorveram de forma que em 13 dias as pessoas já estavam lendo e escrevendo em Braile. Para mim foi motivo de muita honra, fazer esse curso aqui na Biblioteca Isaias Paim”.
A Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaias Paim fica no andar térreo do Memorial da Cultura e da Cidadania Apolônio de Carvalho (Avenida Fernando Corrêa da Costa, 559). O horário de funcionamento é de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 17h30 e sábado das 8 às 13 horas. Telefone: (67) 3316-9161.
Texto: Karina Lima, FCMS