Não se sabe a data exata em que o pajé caiapó nasceu, apenas que foi no início da década de 1930, em Kapot, Mato Grosso, na região do Xingu -ele tem, portanto, cerca de 90 anos.
Desde o contato com o homem não indígena, na década de 1950, ele passou a ser uma figura reconhecida mundialmente como defensor do meio ambiente e dos direitos dos povos originários.
Ganhou notoriedade nas décadas de 1980 e 1990, na luta pela construção do Parque do Xingu e contra a construção da usina de Belo Monte, no Pará, que acabou se concretizando no governo de Dilma Rousseff (PT).
Em sua trajetória, ele conheceu autoridades como reis, presidentes e papas, foi tema de documentários e livros e esteve entre os nomes cotados para receber o Nobel da Paz.
No primeiro dia de 2023, foi uma das oito pessoas que subiram a rampa do Palácio do Planalto e entregaram a faixa presidencial ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
"Eu estava lá representando a coletividade, o bem viver. Pedi para Lula priorizar a demarcação de terras e a retirada dos invasores, e peço que nossos parentes continuem firmes [na resistência]", disse Raoni à Folha, em conversa traduzida do caiapó por seu neto Patxon.
A presença na cerimônia e a reunião com Lula dias antes aconteceram por intermédio da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), que será a próxima presidente da Funai, marcam o contraste da relação que o pajé tinha com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em sua primeira vez na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Bolsonaro atacou o cacique e afirmou que ele era "peça de manobra" de líderes de outros países.
Raoni, por sua vez, denunciou o ex-presidente ao tribunal de Haia por crimes ambientais, em 2021.
Durante a pandemia, o cacique viu sua esposa, Bekywiká Metukitire, morrer após sofrer um infarto e, dias depois, contraiu Covid.
Os caiapós não gostam de falar sobre a morte –quando um parente os deixa, fazem um ritual de luto que tem duração indeterminada, acaba quando os anciões da aldeia decidirem que é a hora certa. Retiram as as pinturas do corpo e os adornos, cortam os cabelos e ficam totalmente reclusos, sem falar com ninguém.
Após o período isolado, o encontro com Lula marca a retomada, aos poucos, da agenda ativista do cacique, que, mesmo com seus cerca de 90 anos, ainda pretende voltar a viajar para outros países –antes, diz, precisa cuidar de sua saúde, que ainda não está totalmente recuperada da Covid.
Apesar dos planos, Raoni admite estar cansado.
"Desejo descansar, mas sempre acontecem ataques e ameaças contra os indígenas e por isso não posso parar de trabalhar e me encontrar com autoridades. Queria que alguém fizesse esse trabalho, mas não há, tenho que continuar", diz.
Seu filho e sucessor natural morreu em 2004, vítima de um acidente de carro. Por isso, Raoni pensa em como passar o bastão do seu legado. Ele tenta preparar para a função sua filha, Kokona. No entanto, a escolha esbarra na tradição de seu povo segundo a qual a sucessão de liderança deveria ir para um filho homem.
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Folha - Qual o saldo do governo Bolsonaro para os povos indígenas?
Raoni Metkerie - O mandato do presidente Bolsonaro não foi bom para nós, indígenas, porque ele atacava nosso trabalho de cuidar e proteger nossa terra dos homens brancos. Ele ameaçava entregar nossa terra a madeireiras, mineradoras e ao agronegócio. Não foi bom para a população indígena [ele] incentivar invasões e desmatamento.
Folha - E o que significou para o senhor passar a faixa para o presidente Lula?
Raoni Metkerie - Eu estava lá representando a coletividade, o bem viver. Pedi ao Lula para priorizar a demarcação de terras e a retirada dos invasores, e peço que nossos parentes continuem firmes [na resistência].
Folha - Sobre o que o senhor e o Lula conversaram no encontro que aconteceu dias antes da posse?
Raoni Metkerie - Conversamos sobre vários assuntos, um deles foi a preservação da floresta nos territórios indígenas, o desmatamento em terras indígenas. Conversamos também sobre o Ministério dos Povos Indígenas e os órgãos indígenas, que acertamos que vão ter indígenas no comando.
Folha - Qual a importância do Ministério dos Povos Indígenas?
Raoni Metkerie - Esse novo ministério é muito importante, vai ser bom para nós e para vocês brancos também, porque vamos trabalhar dentro do governo para atender à demanda indígena de forma correta. Espero que daqui para frente haja mais respeito tanto do homem branco com os indígenas como dos indígenas com o homem branco.
Folha - O senhor está recuperado da Covid?
Raoni Metkerie - Não estou 100%, eu sinto um pouco de cansaço ainda. Quando eu caminho, volto e sinto cansaço, então acredito que não estou totalmente recuperado
Folha - Como foi o seu processo de luto pela morte de sua esposa?
Raoni Metkerie - Fiquei em reclusão. Não podia falar com ninguém, em público, mas mesmo assim eu escutava as falas do Bolsonaro. Ele falou coisas ruins sobre nós. Agora, meu luto se encerrou, me pintei novamente, posso ter contato social, e por isso fui à posse do presidente Lula. Nós conversamos e acredito que será um bom trabalho para os povos indígenas. De proteção, apoio às comunidades e respeito. Ele me disse que vai trabalhar para isso.
Folha - Agora que o senhor deixou o seu luto, pretende voltar a fazer viagens internacionais?
Raoni Metkerie - Eu estou esperando que eu melhore logo, fique 100%, para ter uma vida saudável. Se eu estiver em condições de viajar, quero ir, inclusive encontrar com o presidente [da França, Emmanuel] Macron para continuarmos com nossa articulação. Desde que fiquei doente e depois no luto, eu não pude viajar e pensei muita coisa, lembrava-me dele. Estou me esforçando para me recuperar e poder viajar.
Folha - Como o senhor vê o momento que o país vive atualmente?
Raoni Metkerie - O Bolsonaro falava muita coisa atacando indígenas. Muitos dos meus parentes me falavam que se sentiam tristes, ameaçados, não contentes com essas atitudes do governo. Falava para eles que iria conversar com o novo governo para termos atenção e garantia de apoio às comunidades indígenas. Por isso, fui a Brasília na posse.
Estou pensando nos povos. Vou voltar [a Brasília] novamente e conversar novamente para demarcar terras, porque as comunidades, sem terra, não têm onde ter vida, com alegria e saúde, para viver em paz.
Folha - O senhor já tem mais de 90 anos. Quando vai parar e descansar?
Raoni Metkerie - Desejo descansar, mas sempre acontecem ataques e ameaças contra os indígenas e, por isso, não posso parar de trabalhar e me encontrar com autoridades. Eu queria que alguém fizesse esse trabalho, para eu descansar, mas como não existe, preciso, enquanto eu puder, fazer o trabalho de me reunir com autoridades e cobrar, pelo bem viver das comunidades indígenas.
Folha - Pensa em algum sucessor?
Raoni Metkerie - Estou organizando uma assembleia de lideranças na minha terra. Nesse encontro, quero apresentar mais nomes para a comunidade indígena conhecer essas pessoas, unir-se em volta delas, apoiar, para ver se alguém consegue levar adiante esse meu trabalho.
Folha - O que traz tristeza ao senhor atualmente?
Raoni Metkerie - Em muita coisa eu consegui ter sucesso na vida. A usina de Belo Monte, eu e meu amigo Sting [cantor de rock] trabalhamos e nos posicionamos contra, e conseguimos mobilizar a opinião pública para parar a construção na época. Depois, as pessoas foram enganadas com promessas de uma boa vida e aceitaram a construção. Isso me deixa triste. A gente não queria que a usina barrasse o rio Xingu.
Outra situação que me deixa mais triste ainda é a falta de terra para as comunidades indígenas que não têm território demarcado, que vivem abandonadas, sem proteção. Aquelas que são invadidas por garimpeiros e madeireiros, que ameaçam famílias, matam lideranças. Isso me deixa triste, isso tem que parar, é inaceitável.
Folha - Por que, mesmo após tantos anos de ativismo da sua parte, isso que o senhor diz ser inaceitável continua acontecendo?
Raoni Metkerie - O homem branco tem que pensar bem e parar de destruir a floresta, extrair madeira, garimpar, destruir os territórios.
Eu sou pajé, tive sonhos, visões, em que espíritos me falaram que, se não protegermos o nosso planeta, nós vamos ter consequências graves.
Falo ao governo, a autoridades, aos não indígenas, mas as pessoas não escutam, não acreditam no que eu falo. Queria que o homem branco tivesse consciência para cuidar da nossa terra. Porque podem vir catástrofes, ventos fortes e coisas ruins se a gente não proteger nosso território.
Folha - O que o senhor vê nos seus sonhos?
Raoni Metkerie - Tenho várias visões. Sonhei com seres e um deles me falou que eu ia passar por uma doença que me faria ficar muito velho. Um deles me mostrou o seu poder de vento e eu vi o vento derrubando árvores. Eu segurei a árvore e pedi para ele parar com aquilo. Ele parou, mas me disse que, se o ser humano continuar o que está fazendo, ele soltará aquele vento no mundo. Debaixo da terra eu sonhei com um ser que soltava água pela boca e ele me avisou que uma grande inundação pode acontecer. Já tive muitas visões e experiências como pajé. Eu as compartilho porque acho que as pessoas têm que cuidar do mundo em que vivemos.
Raio-X Raoni Metuktire
O pajé caiapó (tribo que habita entre o norte de Mato Grosso e o sul do Pará) nasceu na década de 1930 –não se sabe ao certo o ano– e vive na Terra Indígena Capoto Jarina, às margens do rio Xingu. Atualmente, é uma das lideranças mais importantes do mundo na defesa do meio ambiente e dos povos indígenas e chegou a ter o nome cotado para o Nobel da Paz.