PMNAS

TĂ©cnica recria pĂȘnis do zero pelo SUS e promete devolver vida sexual ativa

Por Midia NAS em 19/12/2022 às 15:51:55

Era meia-noite de um dia comum de 2012 quando João*, de 61 anos, acordou com o latido dos cachorros. Ele saiu da cama para descobrir se alguém tentava entrar em sua casa, localizada na zona rural de uma cidade baiana, e chegou a ver os bandidos de longe, no escuro. Foi quando um deles disparou um Ășnico tiro, acertando a virilha do fazendeiro e decepando parte do pĂȘnis. A história só teve final feliz no final de setembro deste ano, quando ele passou por uma cirurgia de reconstrução peniana desenvolvida por um médico urologista brasileiro.

"Eu fiquei defeituoso. Não conseguia nem urinar. Quase que eu morri, mas agora tudo vai mudar", disse ele, pouco antes da intervenção. Um dia após o processo, que começou às 15h e terminou por volta de 22h, João disse que não sentiu dor e não via a hora de retirar as bandagens. Ele teve alta dois dias depois da cirurgia, sem nenhuma complicação ou necessidade de bolsa de sangue.

Ao todo, sete pessoas jĂĄ passaram pelo procedimento inovador criado pela equipe do médico Ubirajara Barroso, chefe do serviço de urologia do Hospital UniversitĂĄrio Prof. Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também é coordenador da disciplina de urologia. Seis dos pacientes passaram pela Mobilização Total dos Corpos (TCM, na abreviação em inglĂȘs) por intermédio do Sistema Único de SaĂșde (SUS), sendo João o Ășnico a realizar a cirurgia de forma particular.

O especialista explica que apenas parte do pĂȘnis fica para fora do corpo, tendo uma extensão, não visĂ­vel, dentro do homem. Em média, a parte que enxergamos corresponde a apenas 2/5 do órgão, enquanto os outros 3/5 ficam fixos na bacia, garantindo a ereção. A ideia de Barroso foi relativamente simples: puxar a parte interna para fora.

"O que nós fazemos na cirurgia é destacar essa porção do corpo cavernoso do osso e levar tudo para a superfĂ­cie. É como um iceberg: tem uma porção pequena acima da ĂĄgua e uma grande porção abaixo da ĂĄgua. O pĂȘnis pequeno é só a ponta desse iceberg, então nós retiramos a parte de "dentro da ĂĄgua" e colocamos na superfĂ­cie", afirma.

Apesar da teoria simplificada, o procedimento nunca havia sido feito no mundo. A primeira vez que o especialista pôde comprovar o funcionamento da técnica foi em 2019, em um menino que teve o pĂȘnis arrancado por um cachorro aos 8 meses de idade.

A criança mordida pelo cachorro

O caso, que ganhou as pĂĄginas policiais em meados de 2000, aconteceu em Itapicuru, a cerca de 215 km de Salvador, na Bahia. O cão da famĂ­lia arrancou o pĂȘnis do garoto, que teve o órgão completamente amputado. Na época, a mãe foi aconselhada a realizar uma cirurgia de redesignação sexual no bebĂȘ, para que ele se tornasse do sexo feminino. Ela não aceitou.

Por volta dos 11 anos de idade, André* passou pela primeira cirurgia com o médico Ubirajara Barroso. Utilizando uma técnica anterior ao TCM, o especialista baiano conseguiu recuperar a uretra do menino, que urinava por um orifĂ­cio. Era a segunda cirurgia deste tipo realizada no Brasil e teve sucesso. "Fizemos uma espécie de enxerto de pele para que ele tivesse o aspecto de uma genitĂĄlia masculina", explica.

Entretanto, os hormônios de André jĂĄ estavam se manifestando com a puberdade. "Ele se masturbava pegando no perĂ­neo, uma ĂĄrea próxima ao anus, debaixo do escroto. E aĂ­, quando ele jĂĄ tinha quase 18 anos, veio a ideia de tentarmos", afirma o médico.

No caso do jovem, seria difĂ­cil colocar uma prótese peniana, visto que não havia muito a ser reaproveitado como base. Além disso, uma prótese inflĂĄvel, que ele teria de acionar quando quisesse manter relações sexuais, custa em torno de R$ 40 mil e a cirurgia não é feita pelo SUS. Por fim, a pele usada para revestir a prótese é de outra parte do corpo (como braço, por exemplo,) e não possui terminações nervosas como um órgão sexual – o que impossibilita o prazer da masturbação.

A TMC usa o tecido peniano jĂĄ existente na parte interna, destacando-o do osso e recolocando-o um pouco mais externo. Por ser feita com esse tecido, que é capaz de ereção, não é necessĂĄrio uma prótese. No caso de Jorge, o pĂȘnis foi do zero a oito centĂ­metros. "Ele garante que sente prazer na masturbação e em breve deve tentar penetração, pois soube que estĂĄ "engatilhando" um namoro", afirma.

Ainda assim, os médicos se questionavam se o que o garoto sentia era realmente um orgasmo, visto que ele nunca havia tido um pĂȘnis para comparar. Foi desta forma que encontraram um segundo paciente.

O segundo a passar pela técnica foi Moacir*, que tem transtornos psiquiĂĄtricos. Em um surto psicótico, ele arrancou o próprio pĂȘnis, sobrando apenas cerca de oito centĂ­metros. Anos após a crise e sob controle, ele procurou o médico na tentativa de recuperar o órgão.

Hoje, após o procedimento, o pĂȘnis possui 12,5 centĂ­metros e é capaz de proporcionar prazer semelhante ao órgão sem intervenção, segundo o médico. "Esse também se masturba tranquilo, diz que é como antes e estĂĄ supercontente", resume.

Câncer de pĂȘnis e micropĂȘnis

O primeiro a tentar penetração foi Carlos*, um homem casado que sofreu de câncer de pĂȘnis e, por causa da doença, perdeu quatro centĂ­metros do órgão. De acordo com o médico supervisor da Disciplina de Câncer de PĂȘnis da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), José de Ribamar Rodrigues Calixto, hĂĄ a expectativa de que a TCM seja cada vez mais usada nos casos relacionados a essa doença.

A depender do estĂĄgio do tumor, pode ser necessĂĄrio retirar todo o falo, mas, em casos menos avançados do câncer, é possĂ­vel que a amputação de metade do órgão seja suficiente. "HĂĄ uma estimativa de que o homem consiga penetrar com oito centĂ­metros de pĂȘnis externo em ereção. Mesmo que vocĂȘ faça amputação da metade do pĂȘnis, dificilmente terĂĄ esse tamanho para conseguir voltar a penetrar. Além disso, muitas vezes temos que reconstruir a uretra no perĂ­neo e eles urinam sentados", diz Calixto.

Após a cirurgia, Carlos ficou com cerca de 11,5 centĂ­metros e jĂĄ retomou a vida sexual. Barroso revela que ele confirmou sentir orgasmo como antes. "Ele estĂĄ penetrando inclusive por cima da parceira, que é uma penetração difĂ­cil por ter uma angulação maior. Ou seja, não é apenas o coito com uma mulher "por cima", que é mais fĂĄcil, mas com ele por cima", afirma o criador da técnica.

O quarto desafio da equipe médica baiana foi conseguir não apenas aumentar, mas também tornar mais grosso um caso de micropĂȘnis. "Foi o caso mais desafiador e o que mais demorei", diz.

Dentre as dificuldades, estava o fato de Reinaldo* jĂĄ ter um pĂȘnis bem formado, ainda que inapto para penetração, mas com aspecto e outras funcionalidades regulares. "Um cara com um pĂȘnis assim estĂĄ desesperado, todos os casos envolvem (sentimento de) responsabilidade, mas esse eu não poderia deixar dar errado", diz.

Apesar da dificuldade, o paciente não só passa bem como estĂĄ namorando e faz coito com penetração. Conforme o médico, ele passou de 2,5 centĂ­metros para 9,5 centĂ­metros, além do avanço da largura.

O representante da SBU destacou que o urologista Ubirajara Barroso jĂĄ deu palestras para os médicos associados para que o procedimento seja feito em outros Estados. Por enquanto, apenas uma cirurgia de TCM foi feita fora de solo baiano, sendo o quinto no Brasil. Trata-se de um paciente gaĂșcho, de Porto Alegre.

Na época, Barroso viajou até o Rio Grande do Sul e realizou a cirurgia junto com um colega. Por não se tratar de um paciente dele, o médico não lembra com clareza o comprimento atual do pĂȘnis, mas afirma que o homem ganhou oito centĂ­metros logo após a cirurgia.

O sexto paciente foi o Ășnico a passar por um procedimento modificado: em vez de retirar a parte interna do pĂȘnis, foi retirada a parte interna do clitóris, além de passar pelo processo de engrossamento. "Por incrĂ­vel que pareça, a anatomia do clitóris é idĂȘntica à anatomia do pĂȘnis, tem os mesmos corpos cavernosos cilĂ­ndricos, só que menor. É como um pĂȘnis miniatura, meio que dobrado nele próprio", explica.

Alguns hormônios também facilitaram o engrossamento do pĂȘnis de Marcelo*, que hoje tem 7,1 centĂ­metros. "Obviamente que não tem a mĂ­nima extensão porque o pĂȘnis é maior do que o clitóris, tanto na parte externa como na parte interna. Então por isso que o homem trans vai ter também um pouco mais de limitação", afirma.

Ainda assim, a cirurgia possibilitou a Marcelo ter, por exemplo, a experiĂȘncia de urinar em pé. Barroso utilizou parte da mucosa interna da boca para fazer uma uretra que passasse pelo antigo clĂ­toris até sua ponta, possibilitando que ele urinasse como um homem comum.

Outra surpresa neste caso foi confirmar que Marcelo pode se masturbar e ter uma forma de prazer diferente da que tinha antes. "A mulher se masturba de uma forma, mas o homem se masturba pegando. Hoje o Marcelo* estĂĄ se masturbando. Ele disse "olhe, é um outro orgasmo". Sabemos que o orgasmo também estĂĄ muito na cabeça, então não se trata de dizer que o homem tenha mais ou menos orgasmo que a mulher. Mas ele estĂĄ sentindo muito mais prazer", afirma o médico.

Pós-cirĂșrgico

O paciente mais recente foi João, a vĂ­tima de bandidos na Bahia. Ele jĂĄ estĂĄ de volta para casa, mas foi orientado a ainda não tentar o sexo com sua esposa, com quem é casado hĂĄ 35 anos e tem quatro filhos – dois homens e duas mulher, que deram de presente a cirurgia para o pai. Ele foi o Ășnico a passar pelo serviço de forma particular e não pelo SUS.

O inventor da técnica aconselha que o paciente espere pelo menos dois meses para realizar o coito. De resto, entretanto, a recuperação é rĂĄpida e ele pode voltar a trabalhar cerca de 15 dias depois. A internação, contando pré e pós-cirĂșrgico, costuma levar de dois a trĂȘs dias. Esse prazo pode aumentar caso precise de reconstrução da uretra, mas a cirurgia costuma levar cerca de oito horas.

Nenhum dos homens precisou de bolsa de sangue ou teve algum tipo de complicação. Quando a técnica começou a ser estudada, havia medo de que afetasse principalmente a artéria peniana, além da grande vascularização da região Ă­ntima. "É por isso que os procedimentos nunca tinham sido pensados, pois mobilizar esse osso traria muita lesão aos vasos. O que nós fizemos foi uma modificação técnica, mas que permite que seja feito o procedimento por dentro do osso e ainda aproveitamos essa porção óssea para fixar e garantir a ereção", diz o urologista.

Aumento de pĂȘnis

Apesar de a técnica conseguir aumentar e até engrossar o órgão sexual masculino, Barroso só pretende adotar o procedimento para aqueles diagnosticados com micropĂȘnis, câncer peniano, mutilação ou redesignação de gĂȘnero.

Segundo o profissional, a maioria dos homens que acreditam ter pĂȘnis pequeno normalmente não o tem, sendo desnecessĂĄria uma intervenção cirĂșrgica. "Esses casos nunca foram tratados de maneira a ganhar significativamente no tamanho, mas na vida pessoal", afirma.

Atualmente, o Brasil contabiliza mais de 500 casos de amputação de pĂȘnis por ano e não hĂĄ dados concretos sobre o nĂșmero de homens trans que pretendem fazer cirurgia de redesignação. A fila de espera de Barroso, segundo conta, jĂĄ estĂĄ na casa dos milhares, especialmente pelo fato de os procedimentos serem realizados pelo SUS. O profissional reforça que estĂĄ em contato com diversos urologistas brasileiros e anuncia que, em breve, deve recuperar a vida sexual de um paulistano.

*Todos os nomes foram alterados para não expor os pacientes

Comunicar erro
Camara Municipal de NAS

ComentĂĄrios

Publicidade 728x90 2 Camara Vol 2