A análise do caso havia começado na última semana de junho, pelo voto pelo ministro relator, Dias Toffoli, que foi seguido por unanimidade. Ele afirmou que a tese é inconstitucional por contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.
Pela tese da legítima defesa da honra, argumentava-se que um assassinato ou uma agressão poderiam ser aceitáveis quando a conduta da vítima supostamente ferisse a honra do agressor -como, por exemplo, no caso de adultério.
Em 2021, Toffoli já havia decidido, em liminar (decisão provisória), anular qualquer julgamento em que fosse levantado esse argumento, a que chamou de "esdrúxulo".
O ministro defendeu que a acusação, a autoridade policial e o juízo sejam impedidos de utilizar a tese, direta ou indiretamente, ou qualquer argumento que induza a ela nas fases pré-processual ou processual penais.
Também ficaria vetado o uso da tese em julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
O ministro argumentou que a ideia "remonta a uma concepção rigidamente hierarquizada de família, na qual a mulher ocupa posição subalterna e tem restringida sua dignidade e sua autodeterminação".
Nesta terça, Cármen Lúcia seguiu o voto do relator e disse que a sociedade que trata mulheres de forma inferior é doente.
"Temos que provar que não somos parecidas com humanos, somos igualmente humanos. Não tem nada de sentimento nisso, é apenas um jogo do poder machista, sexista e misógino, que mata as mulheres por elas quererem ser apenas como são, donas de suas vida", disse.
Já a presidente da corte, Rosa Weber, afirmou que não há espaço, no contexto de uma sociedade democrática, para a restauração dos costumes medievais e desumanos do passado. Segundo a ministra, a tese legitima a proteção daquilo que homens, em uma visão de mundo permeada pelo preconceito e a ignorância, consideram ser a sua honra.
"Somente no seio de uma comunidade cujas bases sociais se assentam na desigualdade de gêneros é possível conceber o surgimento do discurso impregnado de ódio e preconceito pelo qual legitima-se, em defesa da honra do homem, o assassinato da mulher infiel", afirmou, também na sessão desta terça.
Em seu voto de junho, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que a decisão é importante por ser um recado muito direto e expresso do Poder Judiciário que não será mais admitido que alguém possa se defender e, mais do que isso, ser absolvido, no tribunal do júri, alegando a legítima defesa da honra.
"É importante a atuação conjunta de todos os Poderes e sociedade civil no sentido de não tolerar mais discursos discriminatórios e a impunidade de envolvidos em crimes cruéis e desumanos, como os feminicídios", disse.
Já Edson Fachin chamou a tese de odiosa e afirmou que o feminicídio é uma chaga. Luís Roberto Barroso a classificou como absurda. "Também faz parte do nosso papel mandar mensagens corretas e empurrar a história na direção certa."
O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou que a tese é inconstitucional e que não está abarcada pelo instituto da legítima defesa, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade humana.
ENTENDA A TESE
A ação foi movida pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), que sustentou que há decisões de tribunais de Justiça que ora validam, ora anulam vereditos do tribunal do júri em que se absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese.
As absolvições com base nesse argumento voltaram a ser frequentes depois de 2008, quando o Congresso alterou diversos procedimentos do tribunal do júri. A nova lei tornou o modelo de julgamento mais célere e extinguiu, por exemplo, a reanálise automática do caso quando a condenação ultrapassar os 20 anos de prisão. A norma também previu, no entanto, a possibilidade de absolvição baseada em "quesito genérico".
Uma ala do Supremo, então, passou a entender que, se o jurado tem a opção de absolver o réu genericamente, a lei consagrou ao jurado o poder de julgar inclusive contra as provas e com base no sentimento de clemência e compaixão.
O julgamento de Raul Fernando Doca Street, que assassinou Ângela Diniz em 1976 e, inicialmente, recebeu dois anos de prisão -que ele pôde cumprir em liberdade por ser réu primário- é usado como exemplo de necessidade de se haver recurso contra decisão do tribunal do júri.
Na ocasião, o advogado Evandro Lins e Silva afirmou que seu cliente tinha agido em legítima defesa da honra e argumentou que Ângela Diniz teria demonstrado comportamentos inadequados que teriam ferido a honra de Doca.
O resultado do julgamento, porém, mobilizou o movimento feminista e fez surgir o slogan "Quem ama não mata". A pressão das mulheres ativistas mudou o cenário e, no segundo júri, o assassino foi considerado culpado e recebeu pena de 15 anos.