Ao todo, 31 ações criminais e 17 ações civis públicas detalham a suposta criação e a venda ilegal de gado por fazendas instaladas na terra indígena, sem as licenças devidas, um negócio que movimentou 48,8 mil cabeças de gado.
Os denunciados teriam cometido crime de invasão de terra da União e de execução de um serviço potencialmente poluidor sem autorização de órgão ambiental, conforme as ações do MPF no Pará.
As denúncias foram baseadas em sistema da Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará) e em guias de trânsito animal emitidas para o deslocamento dos bovinos.
Desde o dia 2, o governo federal promove ações para retirada de invasores das terras indígenas Apyterewa e Trincheira Bacajá, no Pará. Para isso, uma força-tarefa tenta pôr fim a uma vila que surgiu no primeiro território, com igrejas, bares, restaurantes, posto de gasolina e hotel.
Uma forte pressão política junto ao governo Lula (PT) tenta frear a desintrusão. A pressão é feita por prefeituras como a de São Félix do Xingu (PA), onde está Apyterewa, por parlamentares e por integrantes do governo do Pará.
Esse movimento tenta apagar a existência dos mais de 700 indígenas parakanãs que vivem na terra Apyterewa, onde invasores já derrubaram mais de 100 mil hectares de floresta amazônica. Mais de 70 mil hectares viraram pastagem, segundo dado citado nas denúncias do MPF.
"A evolução do desmatamento está diretamente relacionada à grilagem de terras e à pecuária extensiva", afirmaram os procuradores da República.
O governo federal, diante da resistência de invasores, estabeleceu um prazo para a saída voluntária, com bens e gado: até o próximo dia 31. O comunicado afirma que a decisão judicial determina retirada imediata, mas que haverá o prazo -de quase um mês ao todo- para que as famílias deixem as terras indígenas.
Um cadastro dos posseiros vem sendo feito por equipes do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A desintrusão está prevista para durar 90 dias, com permanência de ações para evitar o retorno de invasores.
Entre os denunciados pelo MPF à Justiça, está Cleidimar Gama Rabelo, a Cleidi Capanema, que foi vice-prefeita de São Félix do Xingu de 2013 a 2016. Segundo a acusação criminal, ela é detentora do Sítio Capanema, dentro da terra Apyterewa, e exerceu ilegalmente a atividade pecuária no território.
Guias de trânsito animal, citadas na denúncia, mostram que Cleidimar movimentou 1.859 cabeças de gado "oriundas da área ilegalmente ocupada na terra indígena". Desse total, 94 foram para imóvel rural da Marfrig Global Foods, em 30 e 31 de julho de 2019.
Cleidimar não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Em nota, a Marfrig, que se descreve como líder global na produção de hambúrguer e segunda maior produtora de carne bovina do mundo, afirmou ter identificado o fornecimento de gado do Sítio Capanema em sua base de dados, em agosto de 2019.
"Na época, a propriedade se encontrava totalmente regular e aderente aos compromissos socioambientais assumidos pela empresa." A Marfrig disse ainda que não compra animais de propriedades localizadas em terras indígenas, "em hipótese alguma".
"A companhia não tem originação no Pará desde que encerrou suas operações no estado, em março de 2020. A empresa reiterou seus compromissos de ter uma cadeia de fornecimento 100% rastreável e livre de desmatamento."
Outro invasor da terra indígena, segundo o MPF, seria Quesede Teixeira Teles. A denúncia diz que ele é arrendatário da Fazenda Pontal Nova Vida, de onde partiram 280 cabeças de gado para outras propriedades.
Teles já foi chefe do escritório da Emater em Ourilândia do Norte (PA), conforme ato publicado no Diário Oficial do Pará em agosto de 2020.
A Emater não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Uma terceira denúncia do MPF acusa de crimes o pecuarista Derly dos Santos Ramiro, "um dos fazendeiros mais influentes da Vila Renascer", segundo um dos boletins de desintrusão divulgados pelo governo federal. A vila é a que a força-tarefa do governo tenta desconstituir, por ter sido erguida ilegalmente dentro da terra indígena.
Ramiro foi preso no dia 3, por posse ilegal de arma de fogo. Conforme a denúncia do MPF, ele é apontado como dono da Fazenda Dois Irmãos, dentro da terra Apyterewa.
Em dez anos, 17 guias de trânsito animal foram emitidas por Ramiro para a movimentação de 2.001 cabeças de gado a outras fazendas, afirma a denúncia. Desse total, 16 animais tinham como destino um imóvel rural da FriGol S.A., em 29 de agosto de 2013.
A FriGol diz ser um dos cinco maiores frigoríficos do país, com mais de 450 mil bovinos ao ano. A empresa afirma exportar para mais de 60 países e ter receita bruta anual de R$ 3,7 bilhões.
"Há um flagrante equívoco do MPF", afirmou o advogado Vinicius Borba, que defende Ramiro na Justiça Federal. "Uma resolução da Funai elencou assentados de má-fé e o incluiu, mas ele não é um assentado da reforma agrária. Além disso, a posse é anterior à criação da terra indígena."
O advogado disse que o gado vendido não foi "via pecuária ilegal". Sobre a prisão por posse ilegal de arma de fogo, o cliente pagou fiança e foi liberado, conforme o defensor. Ramiro segue na terra indígena, segundo Borba.
"É imputado à FriGol uma aquisição de animais para o abate demonstrados através de uma guia de trânsito animal que jamais transitou pela companhia", disse o frigorífico, em nota. "Em consulta à Adepará em 23/10/2023, foi observado que a guia está com o status 'em trânsito', evidenciando o não recebimento pela empresa."
O frigorífico comprou gado de outro suposto invasor da terra Apyterewa, Juscelino Moreira, conforme reportagem do site Repórter Brasil de setembro de 2022. Moreira também foi denunciado pelo MPF. Ele usou fazenda fora do território para a venda, conforme a Repórter Brasil. A reportagem não localizou o produtor nem sua defesa.
"A fazenda não possuía à época irregularidades no sistema de monitoramento para fornecedores diretos", afirmou a FriGol. "Ciente de que há necessidade de o setor evoluir no monitoramento de indiretos, a FriGol defende a necessidade de haver uma política pública nacional de monitoramento individual do gado."
Entre os denunciados pelo MPF, estão também dois fornecedores de gado ao Haras e Parque de Vaquejada Dirceu Remor, conforme citado nas acusações: Cipriano Brito e Dorivan Dutra. As fazendas dos dois na terra indígena enviaram 26 cabeças de gado ao parque de vaquejada, segundo a denúncia do MPF.
A reportagem não localizou os dois denunciados nem suas defesas. O advogado do grupo Remor, Henrique Éboli, disse não saber se o parque integra o grupo. "Pelo que conheço do grupo familiar, eles não pactuam com ilegalidades de toda e qualquer forma e repudiam veementemente tais atos."
O MPF denunciou ainda à Justiça como invasor da terra indígena Antônio Borges Belfort. O governo federal, em um boletim sobre a desintrusão, apontou Belfort -que já foi candidato a vereador em São Félix do Xingu- como fazendeiro responsável por manter um funcionário em situação análoga à escravidão.
"O trabalhador foi encontrado na propriedade, onde prestava serviços há cerca de 45 dias sem receber qualquer salário e vivia em condições degradantes", cita um boletim do dia 4. A reportagem não localizou Belfort nem sua defesa.
O pecuarista também forneceu gado da fazenda na terra indígena a grandes frigoríficos, conforme reportagem da Repórter Brasil de junho de 2020.