Morador de Planura, pequena cidade do interior de Minas Gerais, ele cresceu sem passar fome, mas com refeições contadas. O café da manhã não era diário e comer uma pizza ou um hambúrguer era coisa para cada três ou quatro meses. Mesmo diante dessas dificuldades, Maicon ainda buscava tempo para realizar um sonho antigo de seu pai: ser jogador de futebol.
"Digo que fui um escolhido por Deus. 'Você vai ajudar a sua família e ser o pai de todos'. Essa liderança, essa maneira de lidar com o futebol e com as pessoas, vêm do passado e como tive de assumir responsabilidade com meus irmãos", disse Maicon, em entrevista de quase duas horas ao UOL Esporte no estúdio da Produtora Fixe, em Santos. O zagueiro completou 500 jogos na carreira recentemente.
Maurides é conhecido como craque em Planura, mas não virou profissional. O sonho foi transferido para seus filhos. Nas horas vagas, ele os treinava para a finalização com as duas pernas, passe e domínio. Os ensinamentos viravam cascudos às vezes: "Tomava uns tapas legais para aprender a jogar bola".
A CONQUISTA
O pai não revelou apenas Maicon, como também conseguiu ajudar Muller e Maurides Júnior. Os três filhos se tornaram jogadores profissionais. Muller, um "zagueiro técnico", teve problemas extracampo e parou cedo após jogar no Inter B e Bragantino. Maurides, um "centroavante forte", superou grave lesão no início da carreira e está no Radomiak Radom, da Polônia.
Revelação do Internacional, Maurides lesionou o joelho ao comemorar gol com uma cambalhota. Ele ficou 400 dias parado e perdeu espaço no Colorado antes de ir para o Atlético-GO e rodar por Portugal, Bulgária, China e Coreia. Em Portugal, pelo Arouca contra o Porto, Maurides enfrentou Maicon.
Maicon evita dizer, mas foi quem mais deu certo. Ele entende que os caçulas tinham mais talento, mas menor foco.
Maicon começou no Mamoré e foi para o Cruzeiro antes de ser emprestado para a Cabofriense. Ele estreou como profissional na final do Campeonato Mineiro contra o Atlético, mas não se firmou no elenco e, sem muita pretensão, foi para período de testes em Portugal. De lá ele saiu com contrato assinado no Nacional.
Maicon viveu seu auge no Porto e conquistou nove títulos, atuou 226 vezes e até para a seleção de Portugal foi procurado. Ofertas importantes foram recusadas, como do Liverpool, Manchester City, Bayern de Munique, Atlético de Madrid, Juventus e Roma.
"Quando chegava proposta de R$ 20 milhões, pediam R$ 30 milhões. Acho que eu teria possibilidade de seleção [se tivesse ido], abriria o leque. Queria sair às vezes, mas nunca forcei a barra por gratidão".
O Porto recusou grandes propostas, mas facilitou a saída de Maicon para o São Paulo em 2016. O departamento médico tentou acelerar a recuperação de lesão. O brasileiro tomou remédio e injeções para atuar até que, numa partida contra o Arouca, ele pediu para sair e tirou a faixa de capitão.
A situação piorou quando a ex-esposa de Maicon ofendeu a torcida e os médicos na internet. O Porto decidiu negociá-lo e a saída foi o São Paulo. Esse fato acabou com a chance de Maicon atuar por Portugal.
"Eu joguei Champions, por que daria migué contra o Arouca? Tenho muito carinho da torcida, boa parte reconhece, mas a maneira que saí foi chata".
A FOFOCA
Maicon foi bem no Porto, mas o destino poderia ter sido outro por causa da ingenuidade do pai. Havia um combinado de sigilo na negociação, mas Maurides contou para um repórter.
"Acordei cedo e meu ex-empresário já tinha me ligado falando que meu pai fez besteira. Estava nos jornais: 'Maicon aguarda exames no Porto'. Meu pai quase arruinou, mas era para ser. Jogaram um verde e ele caiu".
Maicon teve dificuldade para contornar a situação e recuperar a confiança da diretoria. Hoje, depois de muita apreensão, a história rende risadas na família.
O MAIOR SUSTO
Maicon viveu horas de agonia em 2014, quando sua filha, à época com três anos, entrou em coma no avião durante um voo entre Lisboa e Porto. Ao chegar no hospital, o médico afirmou que a reza era o único caminho. Foi onde o zagueiro se apegou. Foram 27 horas de desespero, sem saber por qual razão Maria se encontrava desacordada. Ao despertar, para a surpresa da família, ela não apresentou nenhuma sequela, como se só tivesse dormido.
Exames posteriores apontaram epilepsia como causa. Atualmente, Maria não precisa nem tomar remédio: "Eu falei que levaria ela para o melhor hospital, mas o médico me falou que não adiantaria. Eu fiquei desesperado e aquilo foi uma lição. Fui vendo que o muito está no pouco. E me transformei num pai melhor".
NO SÃO PAULO, MAICON VIROU O 'GOD OF ZAGA'
Maicon não conquistou títulos no São Paulo, mas foi feliz. Atuar no Tricolor era uma forma de se apresentar ao Brasil depois de sair novo para Portugal. E o apelido ajudou nesse objetivo.
Por causa da semelhança com o personagem Kratos, do jogo God Of War, Maicon passou a ser chamado de "God of Zaga". A alcunha exagerada ajudou no início, mas depois virou pressão: "Começou a me colocar em um nível muito superior, como se eu não pudesse errar, ter uma falha".
A Libertadores de 2016 foi de altos e baixos para Maicon. Nas oitavas ele virou goleiro quando Denis foi expulso nos acréscimos contra o The Strongest. O zagueiro superou a altitude da Bolívia, relembrou os tempos de futebol de salão e fez boas defesas para segurar o resultado. Nas quartas, fez o gol da classificação sobre o Atlético-MG, no Independência. Na semifinal, porém, Maicon foi expulso na eliminação para o Atlético Nacional (COL).
Maicon crê que, se existisse o VAR, ele não seria expulso. O cartão vermelho prejudicou parte da imagem do zagueiro com a torcida tricolor e foi um dos piores momentos da sua carreira.
AS AVENTURAS
Após deixar o São Paulo, Maicon foi para o Galatasaray, da Turquia. Lá, o zagueiro foi recebido por cerca de três mil pessoas no aeroporto. Em um pré-clássico contra o Fenerbahçe, 50 mil torcedores foram ao treino.
A maior loucura, porém, foi ser centroavante. Quando se recuperou de lesão no tornozelo e não tinha a condição física ideal, Maicon foi utilizado na frente: "Olhei a prancheta e 'pô, centroavante?' Tá bom, bora. E foi legal".
Da Turquia, Maicon rumou para o Al-Nassr, da Arábia Saudita. A primeira motivação foi financeira e havia receio com a violência, mas o zagueiro se surpreendeu positivamente. A ideia inicial era de terrorismo, mas Maicon se sentiu seguro no país e ajudou a abrasileirar o clube: "Fiz o vestiário ter música".
Outra surpresa foi o jantar no deserto. O haruf, um carneiro inteiro espetado, era o banquete para convidados descalços e sem camisa. O único utensílio permitido era a mão direita: "Muito gostoso. Uma das melhores coisas de lá".
PASSAGEM RELÂMPAGO NO CRUZEIRO
Maicon ficou pouco mais de três meses no Cruzeiro, clube onde tudo começou. Ao virar SAF, a Raposa renegociou alguns contratos e não conseguiu viabilizar sua permanência.
O Cruzeiro ofereceu a diminuição de 40% do salário e Maicon pediu para essa quantia ser devolvida em caso de acesso à Série A. A condição foi recusada.
"Sou um jogador que joguei em diversos bons clubes, demonstrei desde o início que gostaria de continuar no Cruzeiro. Achei desrespeitoso e, quando apareceu o Santos, não pensei duas vezes".
SONHO REALIZADO
A surpreendente saída do Cruzeiro viabilizou a realização de um sonho de Maicon e da sua família. O zagueiro torcia para o Peixe na infância e sempre viu no seu pai um fanático pelo time de Pelé.
Maicon já havia sido sondado pelo Peixe antes de ir para o Cruzeiro. Quando veio a segunda chance, ele não titubeou. Aos 34 anos, o zagueiro sente que finalmente está onde deveria ter estado antes.
O momento do Santos não é dos melhores, mas Maicon crê que pode ajudar a "devolver" a grandeza do Peixe. E quem sabe se aposentar no clube do coração?