Áudio prova que Deam abandonou Vanessa

Vanessa descreve em 4 minutos como própria polĂ­cia não deu alternativas senão ela voltar para onde foi morta.

Vanessa Ricarte foi morta aos 42 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Vanessa Ricarte foi morta aos 42 anos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Áudios gravados pela jornalista Vanessa Ricarte antes de ser assassinada pelo ex-noivo Caio Nascimento, na Ășltima quarta-feira (12), desmentem o discurso das delegadas que atuam na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) de Campo Grande sobre o atendimento que ela tentou receber horas antes de ser morta.

AlĂ©m disso, os relatos de Vanessa apontam descaso e erros grosseiros no atendimento que ela recebeu quando procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira. Como em muitos casos de feminicĂ­dio em Mato Grosso do Sul, a ajuda não chegou a tempo.

Mesmo assim, Vanessa Ricarte detalhou para uma amiga pouco antes de ser assassinada que esperava "chegar com a polĂ­cia" para tirar o assassino da casa dela. Não conseguiu.

Em entrevista coletiva, a delegada titular da Deam, Eliane Benicasa, chegou a dizer para toda imprensa campo-grandense que teria oferecido escolta, mas a jornalista teria "rejeitado". VĂĄrios jornais de Campo Grande compraram a versão da policial.

Segundo Vanessa, Ă© mentira.

"Fria e seca": delegada endossou discurso que culpabiliza vĂ­tima

Horas antes de se tornar a primeira vĂ­tima de feminicĂ­dio de 2025 em Campo Grande, a jornalista deixou registrado nas mensagens para diversas amigas como se sentiu tratada por uma delegada "fria e seca" na delegacia criada justamente para acolher as mulheres em situação de vulnerabilidade.

Segundo ela, a delegada ainda teria se negado a comentar sobre o histórico de agressões do assassino e falou que a vĂ­tima "jĂĄ sabia porque ele mesmo havia falado de agressões".

Em tom de defesa prévia, na coletiva sobre o feminicídio de Vanessa, a delegada Eliane Benicasa chegou a admitir que faltou agilidade, mas jogou a culpa toda para o judiciårio.

"Não foi falta de agilidade na prestação do serviço, mas precisamos aprimorar a agilidade, no que diz respeito a trâmites judiciais nas medidas protetivas", defendeu-se antes mesmo de os ĂĄudios virem à tona.

Segundo a delegada, a jornalista teria feito tudo certo, pedindo ajuda, mas "não acreditou que corria perigo com o noivo". Foi uma forma sutil de, mais uma vez, culpar a vĂ­tima.

"Tudo protege o cara": sensação da vĂ­tima ao deixar a Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande

No entanto, outra delegada que jĂĄ atuou diretamente no combate à violĂȘncia contra mulheres ouvida pela reportagem considerou gravĂ­ssimas as revelações.

"A frase, no tom como Vanessa relata, indica erros graves e inadmissĂ­veis na conduta de uma delegada de polĂ­cia. Puxa. Ela Ă© a servidora que deveria ser especializada na acolhida de vĂ­timas mulheres na situação de vulnerabilidade que a violĂȘncia domĂ©stica configura. Falando como Vanessa contou que ela falou, ela sutilmente leva as mulheres a se sentirem sob julgamento", explica.

"O jeito que ela me tratou foi bem prolixo. Bem fria e seca", resumiu Vanessa Ricarte.

"Eu, que tenho instrução, escolaridade, fui tratada desta maneira. Imagina uma mulher vulnerĂĄvel… essas que são mortas", disse a jornalista em mensagem a uma amiga. "Tudo protege o cara, o agressor", resumiu.

Poucas horas depois, ao tentar entrar na própria casa, sem escolta policial, Vanessa foi atingida no coração por trĂȘs facadas desferidas por Caio Nascimento. O pedido de medida protetiva, mais uma vez, não adiantou para nada.

Vanessa foi morta a facadas, dentro de casa, pelo ex-noivo, na Ășltima quarta-feira (12), horas após ir à Deam, onde registrou um boletim de ocorrĂȘncia contra o autor.

Governo promete agir agora, mas denĂșncias contra Deam são antigas

"Não adianta nada o governador ficar fazendo foto e discurso sobre proteção às mulheres, enquanto mantĂ©m na ponta do atendimento pessoas descomprometidas com a causa. Assim, as mulheres continuarão sendo mortas em Mato Grosso do Sul", pondera servidora pĂșblica que ouviu os ĂĄudios e se revoltou com as revelações.

Logo após os ĂĄudios de Vanessa Ricarte serem divulgados pela equipe de jornalismo do SBT MS na tarde desta sexta-feira (14), o delegado-geral da PolĂ­cia Civil de Mato Grosso do Sul, LupĂ©rsio Degerone Lucio, gravou um vĂ­deo afirmando que a polĂ­cia "sempre estarĂĄ ao lado da vĂ­tima".

Além da frase pronta de efeito, o DGPC disse que foi instaurado procedimento para apurar "possíveis falhas no atendimento".

No entanto, essas falhas no atendimento da Delegacia de Atendimento à Mulher não são novidade.

HĂĄ trĂȘs meses, o Jornal Midiamax noticiou o relato de mulheres vĂ­timas de violĂȘncia domĂ©stica que aguardaram cerca de 14 horas por atendimento na DEAM de Campo Grande.

Ao invĂ©s de medidas para resolver os problemas apontados, repórteres passaram a ser hostilizadas na delegacia, que chegou a dificultar o acesso dos jornalistas a partes do prĂ©dio pĂșblico.

Entre as vĂ­timas que relataram dificuldades para receber atenção na Deam, mulheres machucadas, sem roupas e com a filha sequestrada.

"Homens "cagando" e andando para Deam enquanto nos matam"

A situação se assemelha ao caso de uma campo-grandense, vĂ­tima de agressões pelo ex-companheiro hĂĄ 30 dias. No dia 13 de janeiro, a mulher buscou a Deam, registrou boletim de ocorrĂȘncia, pediu por medidas protetivas, mas atĂ© esta quinta-feira (13) não teve a medida confirmada. 

Na ocasião, a vĂ­tima contou que o ex - na Ă©poca, monitorado por tornozeleira eletrônica em vista de outras agressões - a agrediu na casa do sogro. Assim, ela precisou ir atĂ© uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), devido à gravidade dos ferimentos.

Na manhã seguinte, policiais prenderam e encaminharam o autor para a Deam, junto com a vĂ­tima. Segundo a mulher, mesmo depois de apanhar e passar uma noite de terror, somente conseguiu registrar o boletim de ocorrĂȘncia e deixar a Casa da Mulher Brasileira no começo da tarde.

Liberados da Deam no mesmo horĂĄrio

Para piorar, o homem que a espancou e mandou para uma UPA foi liberado da Deam no mesmo horĂĄrio que a vĂ­tima. Assim, ao chegar em casa direto da Delegacia, a mulher apanhou novamente.

Segundo a vĂ­tima, Ă© revoltante o fato de que, mesmo passando cerca de oito horas esperando a boa vontade dos servidores na Deam após o primeiro atendimento, o autor foi liberado junto com ela.

Outras campo-grandenses que procuram apoio na Deam reclamam que apesar do registro da ocorrĂȘncia, não recebem nenhum registro sobre os fatos.

"A gente vai lĂĄ, passa humilhação contando que apanhou, porque tem umas policiais que parecem que tem ódio de estar atendendo as mulheres, e sai de lĂĄ de mão abanando, esperando apanhar mais ou ser morta", conclui uma das vĂ­timas.

Assim, o clima de desamparo total para as mulheres vĂ­timas de violĂȘncia domĂ©stica acaba favorecendo os agressores.

"Vou resumir pro senhor, com perdão da expressão: esses homens estão cagando e andando para Deam enquanto nos matam. É isso. Essa Casa da Mulher Brasileira não salva uma sequer. Se eles quiserem, matam mesmo", revolta-se idosa que presenciou o martĂ­rio de uma neta ao precisar de ajuda para escapar de um perseguidor.

Sem amparo, a jovem teve que fugir de MS. "AtĂ© hoje nem o papel da medida protetiva conseguimos. E o agressor tĂĄ por aĂ­ rindo da polĂ­cia e da justiça e de todos nós. Igualzinho este porcaria que matou essa moça. Minha neta a gente conseguiu mandar pra fora antes, mas se dependesse dessas delegadas, podia ser ela", conclui a avó.

Onde tentar ajuda em MS

Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira estĂĄ localizada na Rua BrasĂ­lia, s/n, no Jardim ImĂĄ, 24 horas por dia, inclusive aos finais de semana.

AlĂ©m da DEAM, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria PĂșblica; o MinistĂ©rio PĂșblico; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças - brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. Ă‰ possĂ­vel ligar para 153.

Existem ainda dois nĂșmeros para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher - 180, Ă© um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violĂȘncia contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergĂȘncias.

As ligações para o nĂșmero 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou pĂșblico. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os finais de semana e feriados, jĂĄ que a violĂȘncia contra a mulher Ă© um problema sĂ©rio no Brasil.

JĂĄ no Promuse, o nĂșmero de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp Ă© o (67) 99180-0542.

Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municĂ­pios de Aquidauana, Bataguassu, CorumbĂĄ, Coxim, Dourados, FĂĄtima do Sul, Jardim, NaviraĂ­, Nova Andradina, ParanaĂ­ba, Ponta Porã e TrĂȘs Lagoas.

Quando a PolĂ­cia Civil atua com deszelo, mĂĄ vontade ou comete erros, Ă© possĂ­vel denunciar diretamente na Corregedoria da PolĂ­cia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.