Áudio prova que Deam abandonou Vanessa
Vanessa descreve em 4 minutos como própria polĂcia não deu alternativas senão ela voltar para onde foi morta.
Ăudios gravados pela jornalista Vanessa Ricarte antes de ser assassinada pelo ex-noivo Caio Nascimento, na Ășltima quarta-feira (12), desmentem o discurso das delegadas que atuam na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) de Campo Grande sobre o atendimento que ela tentou receber horas antes de ser morta.
AlĂ©m disso, os relatos de Vanessa apontam descaso e erros grosseiros no atendimento que ela recebeu quando procurou ajuda na Casa da Mulher Brasileira. Como em muitos casos de feminicĂdio em Mato Grosso do Sul, a ajuda não chegou a tempo.
Mesmo assim, Vanessa Ricarte detalhou para uma amiga pouco antes de ser assassinada que esperava "chegar com a polĂcia" para tirar o assassino da casa dela. Não conseguiu.
Em entrevista coletiva, a delegada titular da Deam, Eliane Benicasa, chegou a dizer para toda imprensa campo-grandense que teria oferecido escolta, mas a jornalista teria "rejeitado". VĂĄrios jornais de Campo Grande compraram a versão da policial.
Segundo Vanessa, Ă© mentira.
"Fria e seca": delegada endossou discurso que culpabiliza vĂtima
Horas antes de se tornar a primeira vĂtima de feminicĂdio de 2025 em Campo Grande, a jornalista deixou registrado nas mensagens para diversas amigas como se sentiu tratada por uma delegada "fria e seca" na delegacia criada justamente para acolher as mulheres em situação de vulnerabilidade.
Segundo ela, a delegada ainda teria se negado a comentar sobre o histórico de agressões do assassino e falou que a vĂtima "jĂĄ sabia porque ele mesmo havia falado de agressões".
Em tom de defesa prĂ©via, na coletiva sobre o feminicĂdio de Vanessa, a delegada Eliane Benicasa chegou a admitir que faltou agilidade, mas jogou a culpa toda para o judiciĂĄrio.
"Não foi falta de agilidade na prestação do serviço, mas precisamos aprimorar a agilidade, no que diz respeito a trâmites judiciais nas medidas protetivas", defendeu-se antes mesmo de os ĂĄudios virem à tona.
Segundo a delegada, a jornalista teria feito tudo certo, pedindo ajuda, mas "não acreditou que corria perigo com o noivo". Foi uma forma sutil de, mais uma vez, culpar a vĂtima.
"Tudo protege o cara": sensação da vĂtima ao deixar a Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande
No entanto, outra delegada que jĂĄ atuou diretamente no combate à violĂȘncia contra mulheres ouvida pela reportagem considerou gravĂssimas as revelações.
"A frase, no tom como Vanessa relata, indica erros graves e inadmissĂveis na conduta de uma delegada de polĂcia. Puxa. Ela Ă© a servidora que deveria ser especializada na acolhida de vĂtimas mulheres na situação de vulnerabilidade que a violĂȘncia domĂ©stica configura. Falando como Vanessa contou que ela falou, ela sutilmente leva as mulheres a se sentirem sob julgamento", explica.
"O jeito que ela me tratou foi bem prolixo. Bem fria e seca", resumiu Vanessa Ricarte.
"Eu, que tenho instrução, escolaridade, fui tratada desta maneira. Imagina uma mulher vulnerĂĄvel essas que são mortas", disse a jornalista em mensagem a uma amiga. "Tudo protege o cara, o agressor", resumiu.
Poucas horas depois, ao tentar entrar na própria casa, sem escolta policial, Vanessa foi atingida no coração por trĂȘs facadas desferidas por Caio Nascimento. O pedido de medida protetiva, mais uma vez, não adiantou para nada.
Governo promete agir agora, mas denĂșncias contra Deam são antigas
"Não adianta nada o governador ficar fazendo foto e discurso sobre proteção às mulheres, enquanto mantĂ©m na ponta do atendimento pessoas descomprometidas com a causa. Assim, as mulheres continuarão sendo mortas em Mato Grosso do Sul", pondera servidora pĂșblica que ouviu os ĂĄudios e se revoltou com as revelações.
Logo após os ĂĄudios de Vanessa Ricarte serem divulgados pela equipe de jornalismo do SBT MS na tarde desta sexta-feira (14), o delegado-geral da PolĂcia Civil de Mato Grosso do Sul, LupĂ©rsio Degerone Lucio, gravou um vĂdeo afirmando que a polĂcia "sempre estarĂĄ ao lado da vĂtima".
AlĂ©m da frase pronta de efeito, o DGPC disse que foi instaurado procedimento para apurar "possĂveis falhas no atendimento".
No entanto, essas falhas no atendimento da Delegacia de Atendimento à Mulher não são novidade.
HĂĄ trĂȘs meses, o Jornal Midiamax noticiou o relato de mulheres vĂtimas de violĂȘncia domĂ©stica que aguardaram cerca de 14 horas por atendimento na DEAM de Campo Grande.
Ao invĂ©s de medidas para resolver os problemas apontados, repórteres passaram a ser hostilizadas na delegacia, que chegou a dificultar o acesso dos jornalistas a partes do prĂ©dio pĂșblico.
"Homens "cagando" e andando para Deam enquanto nos matam"
A situação se assemelha ao caso de uma campo-grandense, vĂtima de agressões pelo ex-companheiro hĂĄ 30 dias. No dia 13 de janeiro, a mulher buscou a Deam, registrou boletim de ocorrĂȘncia, pediu por medidas protetivas, mas atĂ© esta quinta-feira (13) não teve a medida confirmada.
Na ocasião, a vĂtima contou que o ex - na Ă©poca, monitorado por tornozeleira eletrônica em vista de outras agressões - a agrediu na casa do sogro. Assim, ela precisou ir atĂ© uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), devido à gravidade dos ferimentos.
Na manhã seguinte, policiais prenderam e encaminharam o autor para a Deam, junto com a vĂtima. Segundo a mulher, mesmo depois de apanhar e passar uma noite de terror, somente conseguiu registrar o boletim de ocorrĂȘncia e deixar a Casa da Mulher Brasileira no começo da tarde.
Liberados da Deam no mesmo horĂĄrio
Para piorar, o homem que a espancou e mandou para uma UPA foi liberado da Deam no mesmo horĂĄrio que a vĂtima. Assim, ao chegar em casa direto da Delegacia, a mulher apanhou novamente.
Segundo a vĂtima, Ă© revoltante o fato de que, mesmo passando cerca de oito horas esperando a boa vontade dos servidores na Deam após o primeiro atendimento, o autor foi liberado junto com ela.
Outras campo-grandenses que procuram apoio na Deam reclamam que apesar do registro da ocorrĂȘncia, não recebem nenhum registro sobre os fatos.
"A gente vai lĂĄ, passa humilhação contando que apanhou, porque tem umas policiais que parecem que tem ódio de estar atendendo as mulheres, e sai de lĂĄ de mão abanando, esperando apanhar mais ou ser morta", conclui uma das vĂtimas.
Assim, o clima de desamparo total para as mulheres vĂtimas de violĂȘncia domĂ©stica acaba favorecendo os agressores.
"Vou resumir pro senhor, com perdão da expressão: esses homens estão cagando e andando para Deam enquanto nos matam. Ă isso. Essa Casa da Mulher Brasileira não salva uma sequer. Se eles quiserem, matam mesmo", revolta-se idosa que presenciou o martĂrio de uma neta ao precisar de ajuda para escapar de um perseguidor.
Sem amparo, a jovem teve que fugir de MS. "AtĂ© hoje nem o papel da medida protetiva conseguimos. E o agressor tĂĄ por aĂ rindo da polĂcia e da justiça e de todos nós. Igualzinho este porcaria que matou essa moça. Minha neta a gente conseguiu mandar pra fora antes, mas se dependesse dessas delegadas, podia ser ela", conclui a avó.
Onde tentar ajuda em MS
Em Campo Grande, a Casa da Mulher Brasileira estĂĄ localizada na Rua BrasĂlia, s/n, no Jardim ImĂĄ, 24 horas por dia, inclusive aos finais de semana.
AlĂ©m da DEAM, funcionam na Casa da Mulher Brasileira a Defensoria PĂșblica; o MinistĂ©rio PĂșblico; a Vara Judicial de Medidas Protetivas; atendimento social e psicológico; alojamento; espaço de cuidado das crianças - brinquedoteca; Patrulha Maria da Penha; e Guarda Municipal. Ă possĂvel ligar para 153.
Existem ainda dois nĂșmeros para contato: 180, que garante o anonimato de quem liga, e o 190. Importante lembrar que a Central de Atendimento à Mulher - 180, Ă© um canal de atendimento telefônico, com foco no acolhimento, na orientação e no encaminhamento para os diversos serviços da rede de enfrentamento à violĂȘncia contra as mulheres em todo o Brasil, mas não serve para emergĂȘncias.
As ligações para o nĂșmero 180 podem ser feitas por telefone móvel ou fixo, particular ou pĂșblico. O serviço funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os finais de semana e feriados, jĂĄ que a violĂȘncia contra a mulher Ă© um problema sĂ©rio no Brasil.
JĂĄ no Promuse, o nĂșmero de telefone para ligações e mensagens via WhatsApp Ă© o (67) 99180-0542.
Confira a localização das DAMs, no interior, clicando aqui. Elas estão localizadas nos municĂpios de Aquidauana, Bataguassu, CorumbĂĄ, Coxim, Dourados, FĂĄtima do Sul, Jardim, NaviraĂ, Nova Andradina, ParanaĂba, Ponta Porã e TrĂȘs Lagoas.
Quando a PolĂcia Civil atua com deszelo, mĂĄ vontade ou comete erros, Ă© possĂvel denunciar diretamente na Corregedoria da PolĂcia Civil de MS pelo telefone: (67) 3314-1896 ou no GACEP (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), do MPMS, pelos telefones (67) 3316-2836, (67) 3316-2837 e (67) 9321-3931.