Fernanda Sá é servidora na Agência de Trânsito (Agetran), na capital. Com a esposa, o casal recorreu a fertilização in vitro, para gestação. A funcionária pública teve que recorrer à Justiça para garantir o direito à licença maternidade de forma integral. Sem gestar, mãe é a 1ª a amamentar filha
Mesmo sem gestar as filhas, a servidora Fernanda de Sá e Silva conseguiu na Justiça o direito de ter a licença maternidade integral de 120 dias. A ação movida contra a prefeitura de Campo Grande teve causa ganha após recusas do órgão e a família recorrer da decisão.
Para Fernanda e a esposa, Vanessa de Almeida Calvis, a vitória na Justiça demostra uma "luta contra homofobia".
"É muito homofobia! Eu e Vanessa tivemos essa discussão antes, quando estávamos vendo a questão da licença. Percebemos que se fosse uma mulher hétero que quisesse a licença, por ela estar gestando, estava tudo certo. Nada ia acontecer, nem ia ser discutido. Essa pessoa não precisaria passar por todas essas etapas que passamos. É um desgaste psicológico e emocional passar por tudo isso, além da questão financeira de pagar advogado, as locomoções", comentou Fernanda.
Fernanda e Vanessa são mães de Maya e Melina.
Arquivo pessoal
A decisão da 2ª turma de recursos, da 4ª Vara do Juizado da Fazenda Pública e da Saúde Pública da Comarca de Campo Grande, Fernanda ganhou a ação por unanimidade. No texto, os juízes fizeram questão de frisar a necessidade de isonomia das relações homoafetivas.
Fernanda foi a primeira servidora do município de Campo Grande a ter direito à licença maternidade como mãe não gestante e doadora. "A maternidade vai muito além do parir. É você estar junto, estar ali do lado", declarou a mãe.
Leia trecho da decisão abaixo:
"O benefício da licença maternidade é concedido visando as necessidades do recém-nascido, de modo que é sensível observar que o relacionamento em construção demanda de atenção, considerando que a adaptação, o estreitamente do relacionando com a mãe requer uma criação de laços, independente da condição de gestante. Nesse contexto, deve-se observar a igualdade e isonomia das relações homoafetivas, principalmente no tocante a licença maternidade, pois a Impetrante gostaria de ter desempenhado o seu papel maternal de forma ampla, inclusive, restou comprovado que realizou tratamento para poder amamentar as menores, contudo o teve reprimido pela Administração Pública, por entender que somente a mulher gestante tem direito de usufruir da licença maternidade".
Pedido de licença
Mães cuidando das filhas Maya e Melina.
Arquivo pessoal
Ao g1, Fernanda explicou como foi o processo para o pedido da licença maternidade. A funcionária pública explicou que quando a esposa estava com 12 semanas de gestação, iniciou o processo para o pedido administrativo do afastamento.
"Eu entrei com o pedido administrativo, eu já sabia que não ia ser fácil, então o pedido já foi feito através de um advogado. No começo tive a resposta negativa, que já suspeitávamos, a prefeitura alegou que na lei do município só fala de mãe gestante e eu não era 'mãe em suma'", relembrou Fernanda.
Logo depois da primeira negativa, a servidora pública entrou com um mandado de segurança, com liminar de cumprimento imediato. "Primeiramente, um juiz deu a casa indeferida, dizendo coisas absurdas. Logo depois outro juiz deferiu".
A decisão definitiva veio em meados de setembro deste ano, dando causa ganha para Fernanda. "Dessarte, não há se falar em ofensa ao princípio da legalidade, mas sim à interpretação conforme os atuais entendimentos acerca da união homoafetiva e da multiparentalidade, visando sempre o bem estar das crianças e seu pleno desenvolvimento", concluíram os juízes que votaram o recurso.
"Mãe é mãe, independente se o filho saiu dela ou não. Essa atitude da prefeitura mostra muito despreparo. Você nunca ter tido um pedido desse é uma coisa, agora dizer que não sabe o que vai fazer é outra coisa totalmente diferente. Precisam ir atrás, se informarem!", compartilhou Fernanda.
Mãe que não gestou foi a primeira a amamentar filha
Fernanda amamentando a filha.
Arquivo pessoal
Um verdadeiro encontro de sonhos marcou o início da história de Fernanda Sá e Silva e Vanessa de Almeida Calvis. Antes de se conheceram, ambas tinham o mesmo desejo: serem mães. Após alguns anos de relacionamento, Fernanda e Vanessa decidiram pela maternidade. O que elas não sabiam é que Fernanda, mesmo sem gestar as filhas, seria a primeira a amamentar as meninas.
As duas optaram pelo método FIV - sigla para fertilização in vitro – procedimento mais eficaz de reprodução assistida. Os embriões e o tratamento começou ainda em dezembro de 2022.
O positivo para gravidez saiu dias após Vanessa realizar o procedimento. A transferência de embriões foi bem sucedida, como as mães lembram. A gravidez foi marcada por vários momentos específicos.
O parto foi cesárea e, enquanto Vanessa ainda se recuperava da cirurgia invasiva, Fernanda realizava mais um sonho: o de amamentar as filhas. Mesmo sem gestar, Fernanda foi a primeira a amamentar Maya.
A questão da lactação, mesmo sem parir, não era algo que Fernanda e Vanessa sabiam. Durante o acompanhamento médico para a FIV, as mães conheceram a possibilidade de que Fernanda também pudesse amamentar as filhas. Com ajuda de remédios específicos e estímulo constante, a surpresa veio nas primeiras horas de vida das crianças.
"Na verdade eu não sabia que era possível as duas amamentarem. A gente soube pelo nosso médico, que comentou e topamos a ideia. Eu nunca pensei em amamentar, mas aflorei essa ideia em mim e pensei: 'se eu posso ajudar, por que não fazer?'".
A conexão entre mães e filhas foi além. "Para mim é especial demais. O primeiro dia que a gente foi fazer a indução a lactação, quem fez primeiro foi a Fernanda com a Maya. É lindo, eu chorei muito, é realmente mágico. É lindo ver a pessoa que eu escolhi, a pessoa mais incrível do mundo, ser, totalmente, 100% mãe", comenta Vanessa emocionada.
Retorno da prefeitura de Campo Grande
Leia nota retorno da prefeitura de Campo Grande na íntegra abaixo:
"A Secretaria Municipal de Gestão esclarece que tem o dever de observar o princípio constitucional da legalidade, bem como seus agentes públicos e órgãos públicos. Por este viés, fica o Município sujeito especificamente ao que está previsto e disposto em lei, devendo agir, fazer ou não fazer exclusivamente de acordo com o que está legislado pelo poder legislativo e sancionado pelo Executivo, conforme lei orgânica Municipal de Campo Grande-MS. Neste sentido, a Secretaria Municipal de Gestão ressalta que não houve demora em relação à análise do requerimento de licença maternidade da referida servidora, pois considerando os registros e publicações constantes no Diário Oficial de Campo Grande-MS, a servidora solicitou, no âmbito administrativo, inicialmente a licença maternidade para mãe não gestante, a qual foi indeferida em consonância com o referido princípio da legalidade, como consta na publicação do Diogrande n. 7.035 de 2 de maio de 2023,p. 11. Em seguida a mesma solicitou uma licença pessoal para tratamento de saúde, a qual foi concedida em 13/07/2023, conforme Portaria "PE" AGETRAN n. 64, de 13/07/2023, publicada no Diogrande n. 7.124 de 17/07/2023 autorizando os períodos de 05/06/2023 a 14/06/2023 e 05/07/2023 a 18/07/2023 para a referida licença. Posteriormente, foi publicada a concessão do direito a licença gestante da servidora pelo período de 120 dias, contados de 04/07/2023 a 31/10/2023 conforme Portaria "PE" AGETRAN n. 67, de 19/07/2023 publicada no Diogrande n. 7.128 de 20/07/2023, e dessa forma, tendo em vista a concomitância verificada entre o segundo período da licença para tratamento de saúde e a licença gestante concedida à servidora, a Portaria "PE" AGETRAN n. 78 de 02/08/2023, publicada no Diogrande n. 7152 tornou sem efeito parte da Portaria "PE" AGETRAN n. 64, de 13/07/2023, publicada no Diogrande n. 7.124 de 17/07/2023, somente quanto ao período de 05/07/2023 a 18/07/2023. Reitera-se que o período de 120 dias de licença gestante concedido à servidora, após intimação judicial, deu-se em conformidade com o estabelecido por determinação judicial (Mandado de Segurança Cível nº 4000304.81-2023.8.12.9000), sendo concedido o período de 04/07/2023 a 31/10/2023, conforme consta na retificação à Portaria "PE" Agetran n. 67 de 19/07/2023, publicada no Diogrande n. 7.159 de 14/08/2023. Posto isto, considerando a garantia constitucional e infralegal vinculada à proteção dos infantes, bem como o caráter de ativação da igualdade entre as trabalhadoras no serviço público, verifica-se que as datas das publicações e considerando que o requerimento de licença gestante chegou a Agetran somente em julho de 2023, percebe-se que o tempo decorrido para a análise e concessão da licença gestante por meio da publicação ocorreu dentro de prazo razoável, não havendo demasiada demora"
O que a prefeitura disse sobre a acusação da servidora sobre a questão de homofobia?
"Diante de tal acusação informada pelo veículo de imprensa, o setor jurídico da Secretaria Municipal de Gestão destaca que o Município, os agentes públicos e os órgãos agem de acordo com os princípios constitucionais já citados e dentro da legalidade, sendo amparado pelas normas do Estatuto Municipal do Servidor, não ocorrendo distinção de qualquer natureza quanto a religião, e ainda sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, uma vez que prevalece a vontade constitucional e da Lei Orgânica municipal quanto a dignidade da pessoa humana e o dever de amparo ao infante/criança.
Assim, é improcedente a alegação de homofobia no caso, pois em conformidade com a lei, a licença maternidade/gestante é concedida a mãe/servidora que estiver gestante, sendo um direito pessoal. Observa-se sim que no presente caso, conforme alegado no pedido administrativo inicial, a servidora não estaria gestante, mas somente sua companheira, dessa forma todas as respostas ao requerimento ocorreu dentro da legalidade, do respeito à dignidade da pessoa humana, sendo afastada a ocorrência de distinção em razão da orientação sexual.
O setor jurídico da Secretaria Municipal de Gestão destaca ainda, que há hipóteses criminais comumente ligadas à difusão de narrativas falsas, sem NENHUMA PROVA em "as partes acusam a prefeitura de homofobia". São elas a denunciação caluniosa e a comunicação falsa de crime. Na comunicação falsa de crime, a mensagem inverídica precisaria estar vinculada a uma hipótese criminal com capacidade de provocar a ação de autoridade. Já na denunciação caluniosa, a acusação remete a uma pessoa específica e a mensagem serve efetivamente para dar início a uma investigação formal"
Prefeitura descreveu caso como "atípico" para justificar demora em respostas à servidora. Veja o retorno:
"O caso é considerado como uma situação atípica dentro dos requerimentos em processos administrativos perante a administração pública de Campo Grande-MS, tendo em vista que a servidora não gerou biologicamente as crianças, apenas sua companheira, e numa interpretação literal a lei dispõe somente sobre a mãe gestante/adotante (maternidade), dessa forma, foi necessário uma análise minuciosa do caso em respeito a lei e a dignidade da pessoas humana, o que explica as várias tramitações do processo entre setores desta Prefeitura Municipal, ressaltando-se novamente que não houve demora administrativa em conceder a licença maternidade após a decisão judicial histórica sem lei que conceda o pedido da servidora".
Quanto à solicitação de prorrogação da licença gestante, ressalta-se primeiramente, que o período de concessão inicial da licença ainda não terminou, pois está garantida até outubro de 2023. Não obstante a isto, a Secretaria Municipal de Gestão informa que o requerimento foi indeferido levando em conta que o prazo de 120 dias concedido inicialmente apenas acompanhou a decisão judicial já referida aqui, considerando que os atos administrativos devem seguir os atos firmados pela decisão judicial que a administração cumpre integralmente, e assim conclui-se que não há motivos para alegação de demora na concessão da licença e nem de sua prorrogação, tendo em vista que a mesma está garantida até o mês de outubro, sendo que ainda estamos no mês de agosto de 2023".
Casos são analisados como um todo, veja retorno:
"A Prefeitura possui uma área de atuação para proteger o interesse público primário, secundário, a legalidade, a razoabilidade e proporcionalidade que possuem grande pertinência temática na sociedade plural e democrática de nosso Século XII, tendo em vista que o Município preza pela igualdade e equidade já citadas, e dessa forma, não há a necessidade de um setor apenas para analisar casos atípicos, sendo que essa análise pode ocorrer em conjunto entre diversos servidores capacitados para trabalhar com assuntos de temáticas recorrentes em processos administrativos e que com conhecimento que possuem e continuam adquirindo por meio de cursos, podem chegar a uma conclusão para cada caso não habitual que apareça.Assim, o Município de Campo Grande-MS assegurou e assegura a igualdade entre todos os servidores independentemente de suas orientações sexuais ao garantir licença maternidade e paternidade a todos, e os homoafetivos (as) os mesmos direitos constitucionais e legais do matrimônio, permitindo dentro da lei, por extensão, também o direito à adoção".
Veja vídeos de Mato Grosso do Sul: